SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Giacometti dizia que o escultor abre buracos no vazio. Existem artistas que, por sua vez, esculpem vazios. Mira Schendel o faz com maestria ao construir espaços dinâmicos coreografando traços, rabiscos, rasuras, signos, letras, palavras, quase palavras e silêncios.
A mostra “Mira Schendel – Esperar que a Letra se Forme”, no Instituto Tomie Ohtake, revela como a artista desenvolve um texto em anti-texto que adota signos gráficos e o próprio vazio como matéria para inscrever gestos na folha e mundo e a partir dele. E desenhar, junto a própria existência, uma poesia-constelação de línguas desterradas à deriva, uma “escrita-desenho” espiralar que flutua e nega o plano.
Filha de um alemão e de uma italiana de origem judaica, Mira foi a primeira mulher a entrar na Universidade Católica de Filosofia de Milão, em 1936, mas foi expulsa pelo movimento antissemita que tomava a Europa. Apátrida, chegou no Brasil em 1951 atravessada por uma ruptura de sua própria origem.
Neste contexto, foi tomada por um sentimento de não pertencimento e chegou a comentar a “dificuldade de estar de todo”. A língua torna-se, portanto, um ponto de partida fundamental, unindo memórias atávicas, referências intelectuais e vivências cotidianas polissêmicas que misturam italiano, alemão, português, latim e francês.
A língua é, afinal, uma condicionante do pensamento e percepção de mundo, e Mira é um exemplo latente desta inevitável e sensível natureza da construção do indivíduo e suas relações. Dividida em sete núcleos, a individual expõe como a artista elaborou questionamentos e experimentações -sobre linguagem, pensamento, representação, corpo e espírito- a partir do próprio fazer artístico.
Em “Chegada ao Brasil e à Palavra”, há uma breve mostra de como Mira passa pela natureza-morta, pela abstração e chega a ter um flerte com arte pop até começar uma longa e íntima relação com a escrita. Vale notar aqui como seu trabalho paralelo em projetos editoriais foi uma oportunidade significativa para a artista experimentar composições de letras, signos e vazios que mais tarde iriam nortear a estruturação gráfica de toda sua obra.
Entre os destaques do núcleo, estão as representações de objetos nas quais rótulos e embalagens aparecem com a descrição do próprio produto.
“Enquanto a semiótica faz associações hierarquizadas entre os estados de presença ou de referenciabilidade -da coisa, da ideia, do símbolo e do signo da coisa-, Mira se apoia na fenomenologia e explora suas codependências e contaminações cruzadas”, comenta Paulo Miyada, curador da mostra ao lado de Galciani Neves. “Busca aprender as transições, encontros, sobreposições e divergências entre o saber consciente, a intuição, a percepção, os sentidos, o espaço e o tempo presente.”
O bloco “Escritura-desenho Estruturando Espaços” destaca as relações entre espaços e quase-palavras ou letras-desenho.
São obras que evidenciam experimentações de estruturas gráficas a partir da tensão entre elementos em diferentes direções e composições espaciais, sugerindo com múltiplas possibilidades de escrita e leitura. Ela investe na repetição e continuidade e cria uma pesquisa formal única de gestos reiterativos que transborda a legibilidade, num processo instigante e, ao mesmo tempo, quase meditativo.
“É uma linha que vira um ‘E’ ou um ‘E’ que vira uma espiral? O ‘A’ pode ser uma montanha ou árvore, o ‘O’ que pode ser o vazio do mundo ou um planeta”, aponta Miyada.
Fica evidente, então, a relação de Mira com a ideia de ideograma. “O ideograma nasce de uma representação visual da coisa que vai sendo esquematizada pela repetição e simplificação até virar um signo textual. E o Haroldo de Campos percebeu que a Mira estava fazendo essas associações com o próprio alfabeto romano, abrindo e ativando a presença da palavra.” Assim como os poetas concretos, ela questiona escrita tradicional sugerindo seu potencial múltiplo.
A corporeidade aparece em diferentes momentos do pensamento e obra de Mira e fica mais clara nos dois módulos centrais, dedicados às monotipias, cadernos e objetos; e no setor “Arte: Encontro com o Corpóreo”, com uma seleção de obras feitas com letraset, máscaras de estêncil e máquinas de escrever.
Mira desenvolveu um método próprio para criar monotipias no (e através do) papel de arroz, cuja transparência embaralha, ainda, as noções de frente e verso, e se libertou para desenvolver uma escrita e leitura espacializada sem gramática rígida ou direções preestabelecidas.
Um procedimento parecido acontece nas obras impressas: os elementos e associações não obedecem uma ordem linear cartesiana, mas acontecem e são percebidos juntos, como uma constelação poética.
A partir de 1968, ela começou a exibir as obras entre placas de acrílico suspensas, criando uma experiência escultórica que reforça as inúmeras possibilidades de observação das obras, salientando não só as dependências e distâncias entres corpos e elementos no papel ou tela, mas também na própria construção da vivência expositiva. Assim, o jogo entre público e obra entra também em sua dança.
As palavras se manifestam, com a grafia, ordem e sentido que conhecemos, no núcleo “A Palavra em Espiral”.
Assim como nas primeiras pinturas de rótulos, elas afloram de seu cotidiano: uma música, um texto ou algum dizer da filha -os assuntos são anunciados de forma mais precisa numa busca pela apreensão do presente em percursos não planos ou lineares.
A ideia é “surpreender o discurso no momento da sua origem”, como definiu a artista, e presenciar o instante do encontro da vida e o “reino dos símbolos”. Numa tentativa de imortalizar o fugaz, e dar sentido ao efêmero, Mira senta-se e espera que a letra assuma sua forma e que se ligue a outras numa escrita e pré-discursiva.
O ano de 1964 parece ter sido especialmente produtivo. É a data da grande tela que protagoniza essa sessão, composta por uma espiral e a palavra “Todos”, mas foi quando Mira desenvolveu muitas monotipias e outros trabalhos da exposição, o que evidencia a conexão de sua pesquisa plástica à principal preocupação da fenomenologia: compreender o processo da formação da percepção.
Ou seja, o momento da construção de uma ideia ou pensamento, o instante anterior à elaboração de uma visão de mundo, entre a abstração e a vida. “A partir do golpe muitos artistas direcionam seus trabalhos para a opinião e expressão direta. Mas para Mira, o que permitia existir os discursos totalitários e a violência não estava no momento da ascensão daquele ditador ou partido, mas estava ligado a um estágio mais interno e íntimo do amadurecimento dos processos cognitivos e percepção da realidade”, diz Miyada.
A instalação “Ondas Paradas de Probabilidade”, um campo composto por linhas de nylon que acendem quando atravessadas pela luz, foi realizada para a 10ª Bienal de São Paulo, marcada pelo boicote de artistas em repúdio à suspensão dos direitos democráticos no país.
No momento em que a palavra parecia ser a mais poderosa arma, Mira resolve falar construindo uma presença silenciosa, massiva e imponente que revela o sussurro do invisível, e é, ao mesmo tempo, transparente e opaca, penetrável e espessa. E sugere que, antes que a letra ou o discurso se forme, é preciso esculpir, escutar e compartilhar o silêncio.
MIRA SCHENDEL – ESPERAR QUE A LETRA SE FORME
Quando Ter. a dom., das 11h às 19h (acesso até 18h). Até 2 de fevereiro
Onde Instituto Tomie Ohtake – r Coropé, 88, São Paulo
Preço Grátis
Classificação Livre
BETA GERMANO / Folhapress