Governo usou cálculo errado para aprovar operação com bancos na conta de luz, aponta Aneel

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Ministério de Minas e Energia usou cálculos errados para aprovar uma operação com bancos que tinha a justificativa anunciada de baixar a conta de luz, apontou nesta terça-feira (29) a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). O valor do benefício aos consumidores, inicialmente estimado em R$ 510 milhões, caiu para R$ 46,4 milhões (queda de 90%) após a operação ter sido homologada.

As contas foram feitas por determinação do governo pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), uma entidade civil responsável por intermediar a compra e venda de eletricidade no país. Conforme mostrou a Folha de S.Paulo em setembro, a operação quase deu prejuízo e teve que passar por ajustes após as constatações dos problemas.

A operação com os bancos havia sido liberada em abril por uma MP (medida provisória) assinada pelo presidente Lula (PT) e pelo ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia), que autorizaram a CCEE a negociar no mercado financeiro um mecanismo de antecipação de recursos oriundos da Eletrobras –que, anteriormente, só seriam recebidos ao longo dos anos. Ou seja, os bancos antecipariam recursos que só seriam depositados posteriormente.

A intenção anunciada pelo governo em abril era baixar a conta de luz por meio da quitação das chamadas contas Covid e Escassez Hídrica (criadas em crises do setor nos anos anteriores). A MP falava que a operação de antecipação estaria autorizada “desde que caracterizado o benefício para o consumidor”, em meio a apontamentos no setor sobre um efeito contrário da medida no longo prazo.

Em julho, portaria dos ministérios da Fazenda e de Minas e Energia determinou à CCEE avaliar o benefício e deu ao MME a responsabilidade de homologar a vantagem aos consumidores.

Em agosto, o MME publicou a homologação da operação com o diagnóstico que haveria benefício ao consumidor, e o ministro citou em entrevista à imprensa uma vantagem de R$ 500 milhões. A operação foi fechada com um consórcio integrado por Banco do Brasil, Itaú BBA, Bradesco, BTG e Santander.

“Esse recurso só pode ser utilizado para minimizar o impacto tarifário. Ele seria pago em 30 anos, e nós estamos pagando à vista fazendo um excelente desconto a favor do Brasil já que foram R$ 500 milhões abaixo do que representavam os juros que brasileiros e brasileiras iriam pagar”, afirmou Silveira em 7 de agosto.

Depois disso, a CCEE enviou à Aneel os documentos da operação com o anexo contendo a memória de cálculo que resultaria nos R$ 510 milhões apontados. No mês seguinte, no entanto, a agência pediu mais informações à Aneel sobre os números.

A agência identificou que as contas da CCEE não continham os pagamentos das distribuidoras para as contas Covid e Escassez previstos para setembro, sendo que a operação de quitação antecipada só ocorreria em outubro. Além disso, foi encontrada uma divergência nas datas de referência de cada fluxo.

Foi a partir dos questionamentos da Aneel que a CCEE fez ajustes a partir de setembro. Foram retiradas as parcelas da Conta Covid e Escassez com vencimento em setembro de 2024, devolvidos custos administrativos, financeiros e tributários e feitos ajustes no imposto incidente sobre o waiver fee (taxa aos bancos). Ao fim das mudanças, a CCEE publicou o valor final de benefício ao consumidor de R$ 46,4 milhões.

“É de indagar se a inclusão desses valores na operação com o intuito de contribuir para a redução tarifária estava prevista desde o início ou foi um artifício utilizado para inflar o benefício ao consumidor”, afirmou Mosna.

Com as alterações, o benefício médio final ao consumidor, segundo a área técnica da Aneel, ficará em 0,02%. Muito menos do que indicava em abril o governo, que estimou oficialmente uma redução de até 3,5% na exposição de motivos da MP (documento que traz a justificativa do governo para a medida).

O relator do caso na Aneel, diretor Fernando Mosna, afirmou que a “alteração substancial do benefício econômico ao consumidor pode potencialmente configurar erro grosseiro”. De acordo com ele, esse tipo de caso é definido como aquele “caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

Ele aponta ainda que houve um pré-pagamento aos bancos de 3% sobre o saldo devedor das contas Covid e Escassez Hídrica, gerando um custo de R$ 285,1 milhões. “[Isso] demonstra que a maior parte do valor movimentado na operação beneficiou diretamente os credores [bancos], não os consumidores”, afirmou Mosna.

Além disso, os técnicos da agência concluíram que o efeito sobre a tarifa vai ser distinto entre os consumidores. Na maior parte dos casos, aponta a agência, a operação não será favorável.

Felipe Augusto Cardoso, gerente de Regulação da Aneel, afirma que 50 distribuidoras se beneficiaram e 53, não. “Empresas que tinham mais recursos a receber da Eletrobras do que o valor a pagar de [contas] Covid e Escassez acabaram cedendo recursos a terceiros”, disse.

“Já empresas da coluna verde tinham um saldo a pagar superior a receber da Eletrobras. Por isso elas têm um VPL [valor presente líquido, decorrente da operação] positivo; enquanto as outras, negativo. Porque a política pública alterou a alocação desses recursos”, afirmou.

Os quatro diretores presentes na reunião da Aneel votaram a favor de duas propostas de encaminhamento de Mosna. São elas a instauração de fiscalização para avaliar a atuação da CCEE e a criação de uma consulta pública de 45 dias para obter subsídios e informações adicionais sobre o processo da antecipação dos recebíveis.

Apenas outro diretor acompanhou integralmente o voto de Mosna, que sugeriu também encaminhar o processo à CGU (Controladoria-Geral da União) para que o órgão avalie uma sindicância ou processo administrativo disciplinar contra o secretário de Energia Elétrica do MME, Gentil Nogueira de Sá Junior —que homologou a operação com o diagnóstico do benefício.

Além disso, Mosna recomendou encaminhar o processo ao Congresso, para ser analisado por comissões, e ao TCU (Tribunal de Contas da União) para uma auditoria.

O caso é encaminhado enquanto o governo tem feito uma pressão pública sobre a Aneel, a acusando, por exemplo, de inação diante de interrupções de energia na área de concessão da Enel na cidade de São Paulo. A CGU abriu neste mês uma investigação preliminar para apurar possíveis irregularidades envolvendo dirigentes da Aneel após denúncia de Silveira.

Procurado pela reportagem, o MME afirmou que a MP teve como premissa a existência de vantagem para a conta de luz e que, “por naturalmente envolver incertezas inerentes a qualquer projeção, o resultado do benefício aos consumidores foi sendo atualizado ao longo do processo”.

O MME afirma que as análises não incorporam outras possíveis vantagens da operação. “Afinal, o critério objetivo estabelecido para a celebração da operação de antecipação não mensura os benefícios macroeconômicos decorrentes da redução tarifária, nem mesmo os benefícios sociais decorrentes do aumento da disponibilidade de renda das famílias brasileiras”, afirma o MME.

A CCEE ainda não havia respondido até a publicação deste texto.

FÁBIO PUPO / Folhapress

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