SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ministérios, agências e burocracias de todo o mundo estudarão nas próximas semanas os 132 parágrafos das 32 páginas da Declaração de Kazan, documento que coroa o fim da cúpula dos líderes do Brics sob a presidência russa.
Há aspectos geopolíticos óbvios, já comentados em diversos espaços: a nova ampliação do quadro de membros do bloco e suas peculiaridades, o veto brasileiro à Venezuela, as posições comuns sobre o conflito no Oriente Médio e o silêncio em relação à guerra na Ucrânia. No entanto, a Declaração de Kazan vai além desses pontos.
É o documento mais articulado já produzido pelo grupo em diferentes áreas. Expande significativamente a declaração conjunta dos ministros de Relações Exteriores de Nijni Novgorod, de junho de 2024, e estabelece uma agenda de cooperação intersetorial profunda e abrangente. Representa um programa claro para o bloco, mas também sintetiza suas contradições e desafios.
A leitura da Declaração de Kazan revela que o processo de decisão por consenso diante da primeira expansão de Joanesburgo de 2023 tem seu preço. Alguns parágrafos foram incluídos na redação final ao custo de nítidas concessões e barganhas nos corredores palacianos do sul da Rússia. Mesmo as ideias não perseguidas foram inseridas no documento.
Não por acaso, a nova categoria de associação ao bloco é a de “país-parceiro”, diluindo a capacidade dos novos confrades de influenciar definitivamente o território. Ao fim e ao cabo, Kazan criou dois clubes de Brics.
Se a Declaração de Kazan flerta com a prolixidade, ela é, ao mesmo tempo, uma não negligenciável carta de posições conjuntas. Basicamente, todos os problemas e intenções de cooperação para resolvê-los identificados pelos membros estão listados na proposta.
A expansão do Brics pode ser pensada como uma tentativa de remodelação da atual governança global, mas ela é também um menu de oportunidades de interação em distintas áreas que vão desde a questão climática, passando pela sensível questão de minérios na cadeia de produção, até iniciativas de colaboração desportiva. Ao se terminar a leitura e perceber o nível de interatividade que o Brics está estabelecendo, descortina-se um cenário que afasta em muito a hipótese da assim chamada desglobalização.
O óbvio desafio do novo Brics parece ser a construção de consenso em relação aos seus membros (e parceiros) –um desafio que, recorde-se, sempre existiu, mas que parece ter se agudizado. Mas não somente.
À medida que crescem suas ambições, também aumentam as possibilidades de conflitos e estiramentos intra-bloco. Ao mesmo tempo, elevam-se as oportunidades de uma transformação inovadora na ordem jurídica internacional.
O documento revela posições coordenadas em relação a certas regras em transformação relativas à sustentabilidade, sanções, políticas discriminatórias em virtude de razões ambientais e até mesmo direitos humanos.
Há uma clara tomada de posição em relação ao direito humano ao desenvolvimento, um tópico de grande debate na atualidade diante da sua potencial relação com outros direitos. A tentativa de uma regulação de mercado de carbonos no âmbito do Bric também chama a atenção pela sua inventividade diante dos impasses nas discussões globais da matéria nas COPs climáticas.
O fato de que o Brasil ocupa um privilegiado lugar à mesa durante esse processo de expansão não parece ser negativo. Ao contrário, garante que as vozes dos formuladores de políticas brasileiros sejam ouvidas, consideradas e tornem-se capazes de influenciar um processo de formação normativa altamente dinâmico e fluido.
A participação brasileira no Brics deve ser menos guiada para o apaziguamento das contradições do bloco, mas para o fortalecimento da resposta aos desafios. Essas são, também, oportunidades.
Redação / Folhapress