Amara Moira faz de ‘Neca’ um monumento em língua bajubá às travestis do Brasil

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Neca”, o romance de estreia de Amara Moira, é considerado o primeiro do gênero todo escrito em bajubá, a “língua das bichas”, e convida a um mergulho na cultura das travestis.

O bajubá (ou pajubá, tanto faz) é o português falado pela travesti da rua. Surgiu nas zonas de prostituição como linguagem de segurança, incompreensível para o cliente ou policial de plantão —fundamental, portanto, para desviar da violência, do cárcere e da morte.

“O que criou essa linguagem foi justamente a segregação absurda que a comunidade sofria”, diz Amara, que aprendeu o bajubá com travestis mais velhas no Jardim Itatinga, reduto de trabalho sexual em Campinas, no interior paulista.

Em “Neca”, a autora busca registrar uma rica tradição oral brasileira que, a seu ver, corre risco de extinção à medida que avança a inclusão de pessoas trans na sociedade. “Imagino um futuro em que o bajubá não seja só ferramenta de proteção e possa sobreviver como algo mais lúdico”, afirma.

A linguagem é muito mais que uma coleção de gírias da comunidade LGBTQIA+. Destacam-se, por exemplo, palavras de origens africanas adquiridas nos terreiros de umbanda e candomblé, espaços historicamente mais acolhedores para dissidentes de gênero. Vêm daí termos como “erê”, “mona” e “alibã”, que ganharam significado de criança, mulher e policial —é o caso da própria palavra “bajubá”, segredo em iorubá.

Há também expressões adaptadas de línguas europeias, legado da diáspora de travestis brasileiras que migraram aos milhares para lá a partir dos anos 1970, em busca de tolerância. Por exemplo, “guanti” (luvas, em italiano) virou “guanto” (camisinha, em bajubá); já o “maricón” do espanhol deu lugar a “maricona” (homem gay).

Mesmo diante de tantos termos desconhecidos do leigo, Amara optou por não incluir um glossário. “Eu quero que as pessoas sintam fascínio, ainda que não compreendam completamente o texto. É assim que você aprende o bajubá, fingindo que está entendendo até que uma hora começa a entender de verdade.”

Logo na primeira linha do romance, aparecem quatro palavras cifradas: “Passada! O ocó, cê acredita que ele pediu pra eu nenar na neca ele?”. Quem não é fluente em bajubá tem que ir atrás de algum dos dicionários já publicados ou então consultar sua travesti de referência para entender o que está sendo falado.

Superado o estranhamento inicial, “Neca” se revela um romance hilário. Simona, a narradora protagonista, reencontra Amara, seu antigo amor, e desanda a falar da vida —das memórias de infância de uma “criança viada” às dores e delícias de ser prostituta.

O fio condutor do romance são os causos cabeludos de clientes, baseados nos perrengues vividos pela própria autora e por amigas do peito e da pista. Assim, o livro lambuza a linha que separa o erótico do escabroso, arrancando gargalhadas.

Entre os tesouros, estão as fofocas literárias resgatadas por Simona dos tempos do colegial. Somos apresentados à “viadagem pregressa” de autores como Álvares de Azevedo, Mário de Andrade e Fernando Pessoa, entre outros.

Segundo Amara, “Neca” é uma mistura de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, com “120 Dias de Sodoma”, do Marquês de Sade. Outra inspiração é “Ulysses”, de James Joyce, tema da dissertação do doutorado feito pela autora em teoria e crítica literária na Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas.

Ela diz que os pilares de seu projeto literário são o deboche, a obscenidade e a busca desenfreada pela beleza. Isso se reflete em sua posição sobre alguns temas das chamadas guerras culturais, nos quais costuma divergir de parte da comunidade trans.

Por exemplo, há quem defenda proibir atores cis de interpretar personagens trans, bem como impedir homens de se fantasiarem de travestis no Carnaval —o que críticos veem como uma propensão dos movimentos ditos identitários ao autoritarismo e à censura.

“Eu sinto que a gente vive um momento de esfacelamento das nossas certezas sobre o que é um homem, o que é uma mulher, quem pode reivindicar o quê”, afirma Amara. “Acho, inclusive, que o teatro e o Carnaval são espaços onde muitas pessoas vão experimentar para se conhecer, para viver outras experiências de vida, de gênero, de sexualidade.”

“Não vou ficar pedindo a carteirinha da pessoa para ver se ela pode vestir aquela roupa. Eu quero que as pessoas vistam as roupas que elas quiserem. Se ela estiver tirando sarro de alguém, eu quero poder tirar sarro dela de volta, e não proibi-la de tirar sarro de mim.”

Amara acredita que o mundo seria um lugar melhor se todos aprendessem a lidar melhor com o deboche. “Talvez nossa geração não saiba brincar de devolver esse constrangimento na mesma intensidade”, diz.

“Neca” nasceu de um post de blog e se transformou em um capítulo de meia página em “E se Eu Fosse Puta”, livro de memórias de Amara, publicado pela n-1 Edições em 2016. Três anos depois, virou um conto de pouco mais de dez páginas na antologia “A Resistência dos Vagalumes”, da editora Nós. Agora, dá corpo a um romance de mais de cem páginas publicado pela maior editora do país, a Companhia das Letras —também disponível em audiolivro narrado pela autora.

Ela não descarta retornar à obra no futuro, em versão maior e mais cifrada. “Eu poderia ter apelado mais no bajubá, mas eu queria que o leitor sentisse que ainda tem chão, mesmo escorregando. Quero publicar uma obra em que ele perca o chão, escrita numa linguagem de uma comunidade que, em boa parte, não completou o ensino médio”, afirma.

Falando em futuro, Simona, a narradora, profetiza: “Pelos serviços prestados, um dia vai ter estátua pras travestis. Duvida? Questão de tempo, ainda mais agora que tem mona até deputada. Quer dizer, deputrava. Vrá! O deboche das deusas. Pois você aguarde”.

Enquanto a estátua não vem, “Neca” é um monumento à parte às travestis do Brasil.

NECA: ROMANCE EM BAJUBÁ

– Preço R$ 59,90 (120 págs.); R$ 29,90 (audiolivro)

– Autoria Amara Moira

– Editora Companhia das Letras

DANI AVELAR / Folhapress

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