Se Trump diz querer ser ditador, temos que levar a sério, afirma Anne Applebaum

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – A escritora e jornalista americana Anne Applebaum, 60, vem se dedicando cada vez mais a estudar um fenômeno que prospera no mundo: o autoritarismo.

“O Crepúsculo da Democracia”, lançado em 2020, ampliou a repercussão da vencedora do Pulitzer no Brasil ao retratar governantes que se elegem em regimes de liberdade e corroem as instituições por dentro – casos do húngaro Viktor Orbán e do polonês Jaroslav Kaczinski.

Em “Autocracia S.A.”, que chega agora às livrarias brasileiras, ela discute a colaboração entre líderes autoritários como o russo Vladimir Putin, o chinês Xi Jinping e o venezuelano Nicolás Maduro, que, segundo ela, criaram uma rede internacional por meio da qual se ajudam com finanças e estratégias de propaganda.

Em entrevista, Applebaum critica o presidente Lula por sua relação com a Venezuela e diz que o republicano Donald Trump, candidato à Presidência dos Estados Unidos, é um líder que importa procedimentos de autocracias.

Applebaum falou com a reportagem de Washington, por videoconferência. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

*

PERGUNTA – Seus livros sugerem que há vários tipos de autocratas, alguns disfarçados. Poderia falar mais a respeito?

ANNE APPLEBAUM – Sim, há vários tons de cinza, não há um campo de democracias e um campo de ditaduras. Há muitos países no meio, e há muitas práticas autocráticas dentro das democracias. Há também países que são nominalmente parte do mundo democrático mas se alinham cada vez mais a autocracias, tentando importar seus métodos.

O exemplo mais famoso é Viktor Orbán, que é membro da União Europeia e da Otan, e mesmo assim está abertamente alinhado com a Rússia em sua política externa. A Hungria aceitou investimentos da Rússia que não são transparentes. Há também uma relação entre o partido político de Orbán, o Fidesz, e o Estado russo. Ele atua em geral como a voz da Rússia no mundo democrático.

P – Um dos temas centrais de “Autocracia S.A.” é a influência de autocratas em Estados democráticos. Como isso ocorre?

AA – Veja o caso dos Estados Unidos. Um oligarca como Elon Musk, que aparentemente tem contato frequente com AVladimir Putin, está atuando na eleição americana. Ele fala até em pagar as pessoas para que se registrem e votem, e não é claro se isso é legal ou não.

Aí está a influência do mundo autocrático dentro de campanhas domésticas. Isso ocorre também na França, na Alemanha, na Itália, em vários lugares onde há partidos e políticos que importam técnicas do mundo autocrático e tentam usá-las em democracias.

P – A sra. cita uma fala de Trump, que disse que usaria o sistema legal americano para se vingar de adversários. Seria um desses exemplos?

AA – Sim. Trump chegou a citar os nomes das pessoas que iria perseguir, os parlamentares [democratas] Nancy Pelosi e Adam Schiff e o procurador especial Jack Smith. Trump já expressou de várias maneiras seu desprezo pela lei, disse que queria ser ditador por um dia. Ele é um candidato à Presidência e, se diz que irá fazer isso, então nós temos que levar a sério.

P – Como serão as relações entre EUA e Rússia se Trump ganhar a eleição? Na Europa há o temor de cortes na ajuda militar à Ucrânia, no espírito “América primeiro”.

AA – É muito difícil dizer, porque Trump é interessado unicamente em si próprio, em seu dinheiro, em seu poder, em seu prestígio. O que ele fizer na guerra entre a Rússia e a Ucrânia será determinado por seus interesses pessoais. Talvez Trump não queira parecer um perdedor e, assim, não abandone a Ucrânia. Mas certamente ele não está interessado em ser o líder de uma aliança pela democracia.

P – Outro tópico de seu livro é a desinformação. A sra. sugere que o Ocidente deveria financiar agências de notícias para competir com agências chinesas e russas que são financiadas pelo Estado. Isso não poderia comprometer a independência da imprensa?

AA – Não pensei nisso em relação a Europa e EUA. Pensei no resto do mundo. Agências russas ou chinesas fornecem conteúdo livre de custos em países mais pobres, e é muito difícil para agências de notícias como Reuters ou Associated Press competirem, porque elas precisam ganhar dinheiro.

Teríamos que ser criativos. Uma coalizão de países poderia se juntar para oferecer conteúdo baseado em fatos reais. Poderia ser também um projeto de filantropia. Porque, nesses países, é importante ter alguma fonte de notícias confiável que seja alternativa à mídia estatal chinesa ou russa.

P – A sra. também sugere que o Brics se alinha cada vez mais com os interesses da Rússia. Há risco de se tornar um grupo anti-Ocidente?

AA – Se for apenas uma organização de cooperação econômica formada por países fora da Europa e da América do Norte, eu não tenho nenhum problema com isso. É justo que países e pessoas se organizem de qualquer forma, para discutir qualquer coisa. Mas Putin tem um objetivo muito claro para o Brics: fazer um sistema de apoio para ele mesmo, para manter a guerra acontecendo.

Aí surgem questões que eu não entendo. O Brasil, a Índia e a África do Sul querem se tornar aliados de um Estado imperialista violento como a Rússia? Eles se dispõem a corroborar a ocupação ilegal de outro país? E eles entendem as consequências disso?

P – Quais seriam as consequências?

AA – Quando fala em uma “nova ordem mundial”, Putin quer dizer uma ordem em que não nos importamos com a carta das Nações Unidas, que diz que os países têm soberania. Uma ordem em que não nos importamos mais com as leis de direitos humanos.

Em vez disso, seria uma ordem mundial em que os grandes países podem fazer o que quiserem, incluindo invadir países menores. É isso que o Brasil quer apoiar? É uma pergunta importante para os brasileiros.

Há ainda outra coisa que me confunde sobre o Brasil, que tem ao lado de casa uma crise autocrática muito importante, que é a da Venezuela. O Brasil poderia ter um papel enorme em ajudar a resolver esse desastre econômico, essa crise de refugiados que, é claro, afeta a ele próprio e outros países da América Latina.

Se o presidente Lula quer ser um ator importante no mundo, ele poderia ajudar a resolver essa crise que está ao lado de sua fronteira. Ele é a melhor pessoa do planeta para cuidar disso.

P – O Brasil endossou a entrada da Venezuela no Mercosul, mas agora barrou a entrada do país no Brics.

AA – Os venezuelanos votaram contra Maduro, elegeram Edmundo González. Maduro está resistindo ao voto popular. Lula poderia ser parte de uma coalizão internacional que trabalhasse junto com a oposição venezuelana, junto com outros países da América Latina, para persuadir Maduro a sair. Isso é muito mais importante que bloquear o acesso da Venezuela ao Brics.

P – A sra. argumenta que alguns valores considerados universais no pós-guerra, como direitos humanos ou inviolabilidade das fronteiras, estão sendo sistematicamente desafiados por autocratas como Putin e Maduro. Estaríamos vivendo uma “guerra fria cultural”?

AA – Há um conflito entre diferentes tipos de sistemas políticos. As autocracias identificaram esse conflito antes de nós e começaram um debate, argumentando que as ditaduras são estáveis e seguras, enquanto as democracias seriam divididas e degeneradas.

Não é uma guerra fria porque, como eu disse, não é como se houvesse uma parede separando os dois lados, mas um panorama nuançado, cheio de zonas cinzentas. Mas há, sim, um confronto de ideias.

P – Há possibilidade de as democracias vencerem esse confronto, quando se leva em conta que países como a China não têm tradição ou cultura democrática?

AA – Eu não estou preocupada com a China. O importante é ganhar a guerra de ideias em nossos próprios países, nos EUA, na Europa, no Brasil, na Índia, na Turquia —nos países que têm tradições democráticas e que devem permanecer sociedades abertas com leis e elementos de transparência e responsabilização dos governos.

Eu não estou argumentando que precisamos fazer uma mudança de regime na China. Isso não é problema nosso.

De acordo com seu livro, uma das estratégias dos autocratas é distorcer conceitos importantes da cultura democrática. Por exemplo, “liberdade de expressão” vira a liberdade de espalhar desinformação em aplicativos de mensagens e redes sociais.

Quanto mais eu penso em desinformação, mais penso que é uma questão de regulação. Nós demos poder demais a um grupo de homens muito ricos do Vale do Silício. Eles não estão interessados na democracia, mas em seu próprio dinheiro. As plataformas precisam ser responsáveis pelo que publicam, do mesmo jeito que os jornais e as televisões são.

Creio que a única instituição capaz de fazer isso será a União Europeia. A Comissão Europeia tem habilidade técnica e vontade política para fazer isso. E, por ser grande em número de consumidores, a UE pode ter um impacto no resto do mundo.

P – A propaganda de que autocracias seriam mais organizadas e eficientes encontra adeptos no Ocidente. Não seria pelo fato de que as democracias têm falhado em resolver problemas concretos das pessoas?

AA – É um mito completo dizer que as ditaduras funcionam bem. A Rússia não funciona bem. A Venezuela não funciona bem. Zimbábue não funciona bem.

Tudo isso é um mito que os autocratas inventam, de que existem formas simples de resolver problemas complicados. Problemas complicados requerem soluções complicadas e pessoas inteligentes para resolvê-los.

As razões do sucesso da China, que tirou milhões de pessoas da pobreza, têm mais a ver com a natureza do Estado chinês, com uma longa tradição de serviço público eficiente. E com uma decisão, tomada há algumas décadas, de permitir aos indivíduos correr riscos, fazer investimentos e prosperar.

A ditadura não tem nada a ver com isso. Ela não é boa para a economia e para os negócios chineses.

P – Há algo que possa ser feito pelos cidadãos comuns na defesa das democracias?

AA – Eu escrevo muito sobre o valor da participação política, de ter um papel ativo nos processos eleitorais. Não apenas votar, mas também ser uma parte vocal dentro de sua comunidade.

Um dos erros cometidos no mundo democrático foi tornar a política profissionalizada nos últimos 20 anos, e alguns cidadãos passaram a achar que deveriam deixar tudo nas mãos dos políticos profissionais.

Na verdade, as democracias funcionam melhor quando todos estão envolvidos e todos se preocupam. Nas eleições de 2020, as pessoas tiveram comparecimento alto nos EUA. Era uma época difícil por causa da pandemia e, no entanto, os cidadãos ajudaram nos locais de votação e se envolveram no processo de observação e fiscalização. Muitas pessoas fizeram um esforço para proteger a democracia americana. E acho que estamos vendo o mesmo acontecer agora em 2024.

P – Qual a sua expectativa sobre essa eleição?

AA – Eu consigo imaginar vários cenários diferentes, mas simplesmente não sei.

Não vejo, pelo menos agora, que isso possa acontecer nos EUA, porque o poder financeiro das empresas do Vale do Silício é muito grande.

*

RAIO-X

ANNE APPLEBAUM, 60

Historiadora e jornalista, é autora de vários livros sobre o Leste Europeu e o colapso do comunismo, que cobriu para a revista britânica The Economist. Um deles, “Gulag: Uma História”, ganhou o Prêmio Pulitzer de não ficção. Seus textos mais recentes, publicados na revista americana The Atlantic, pensam as autocracias modernas, como Hungria, Polônia e, mais recentemente, Rússia, China e Venezuela. Sobre este tema produziu dois livros: “O Crepúsculo da Democracia” (2020) e “Autocracia S.A.” (2024). Applebaum nasceu em Washington e tem cidadania americana e polonesa —é casada desde 1992 com o político Radoslaw Sikorski, do partido de centro-direita Plataforma Cívica, da Polônia.

AUTOCRACIA S.A.: OS DITADORES QUE QUEREM DOMINAR O MUNDO

Quando Lançamento em 4/11

Preço R$ 69,90 (182 págs.); R$ 39,90 (ebook)

Autoria Anne Applebaum

Editora Record

Tradução Alessandra Bonrruquer

JOÃO GABRIEL DE LIMA / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS