No dia 19 de outubro caíram, em menos de 24 horas, 175 milímetros de água da chuva sobre a região da Emilia-Romagna, no norte da Itália, mais que o dobro do previsto para todo o mês. Na área metropolitana de Bolonha, a mais afetada, 13 cidades enfrentaram situações críticas, com torrentes e rios que, cheios, alagaram plantações, estradas e ruas.
Da população de pouco mais de 1 milhão, cerca de 2.000 pessoas precisaram deixar suas casas. Um jovem de 20 anos morreu, ao ter o carro arrastado pela enchente. Na área urbana, a água vinha por cima e, ao mesmo tempo, surgia de bueiros e ralos, engrossando enxurradas. Foi uma avalanche de água, definiu a governadora.
Era noite de sábado e, segundo os jornais locais, 12 mil pontos chegaram a ficar sem energia elétrica. Na manhã de domingo, o prefeito de Bolonha anunciou que esse número havia caído para 3.500. “Estamos fazendo de tudo. Os bombeiros estão usando bombas de água para liberar subestações elétricas e restaurar a energia”, disse Matteo Lepore.
Na tarde de segunda-feira, havia uma dezena de vias interrompidas em Bolonha, e o boletim da prefeitura relatava apenas 150 usuários sem luz. A área é atendida pela Enel, por meio da E-distribuzione, empresa do grupo que distribui energia elétrica na maior parte do país.
Na semana anterior, também a Grande São Paulo havia lidado com efeitos de um temporal, que havia derrubado quase 400 árvores na capital e deixado 3,1 milhões de clientes sem energia elétrica. Seis dias depois da chuva, 36 mil imóveis atendidos pela Enel São Paulo ainda estavam sem luz.
Separadas por poucos dias, as duas situações levantam a questão de por que os clientes paulistas da Enel parecerem mais vulneráveis a eventos climáticos do que os usuários italianos atendidos pelo mesmo grupo.
Uma diferença de base é que, enquanto a Enel está presente em São Paulo desde 2018, após ter ficado com a concessão do serviço da região metropolitana, na Itália, a empresa herdou a rede erguida e mantida pela companhia estatal que organizou o sistema nacional de produção e distribuição de luz, nos anos 1960.
Embora existam hoje outros distribuidores, a E-distribuzione detém a maior fatia do mercado, desde quando o setor foi liberalizado, na virada para os anos 2000. A empresa gerencia mais de 1 milhão de quilômetros de linhas elétricas, em cerca de 7.400 cidades, com 31 milhões de clientes. Em São Paulo, são 43 mil quilômetros, em 24 cidades e 8 milhões de clientes.
É do início da organização da infraestrutura de energia elétrica na Itália que vem outra razão para a resiliência das cidades italianas a eventos extremos os fios enterrados. Atualmente dos 800 km de linhas de baixa tensão que chegam às áreas urbanas pela E-distribuzione, 35% têm cabos subterrâneos. Em São Paulo, somente 7% (3.000 km) são subterrâneos, incluindo média, baixa e alta tensão.
“Nas cidades [italianas], densamente povoadas, sempre foram previstos fios subterrâneos, claramente mais seguros, incluindo municípios de 20 mil habitantes. Isso desde os anos 1960 e 1970”, diz à Folha Carlo Andrea Bollino, professor de economia energética na Universidade Luiss Guido Carli, em Roma.
Segundo o especialista, outra característica que leva a uma rede mais resistente é a redundância de linhas. “O segredo da rede elétrica é ter mais daquilo de que se precisa. Se cai uma árvore, tem uma outra linha que dá a volta por outro lado”, afirma. “Esse é um modo de ter resiliência em caso de eventos atmosféricos extremos.”
Na Itália, a E-distribuzione tem atuado para tornar a rede mais automatizada, especialmente nas linhas de média tensão, o que permite a intervenção mais rápida em caso de falhas. Hoje, 75% das linhas de média voltagem são automatizadas.
Na área de medidores inteligentes (“smart meters”), em que há maior controle e transparência no consumo, 90% dos clientes da E-distribuzione têm o aparelho instalado. Em São Paulo, a Enel instalou mais de 1 milhão de medidores, 13% do total de usuários.
Procurada, a Enel respondeu, por meio de sua assessoria, que as redes de distribuição têm caraterísticas diferentes de acordo com a cidade e o país.
“O enterramento de cabos no Brasil ocorre em casos específicos, seguindo critérios técnicos e econômicos, quando o investimento é considerado prudente para não impactar a tarifa de energia dos consumidores”, disse.
“Desde 2018, a Enel intensificou os investimentos em São Paulo para aumentar a qualidade do serviço e ir além dos indicadores estabelecidos em seu contrato de concessão”, afirmou. “De 2018 a 2023, a empresa investiu, em média, cerca de R$ 1,4 bilhão por ano na área de concessão, quase o dobro dos R$ 800 milhões anuais realizados pelo controlador anterior.”
Disse também que está contratando, até março de 2025, 1.200 novos profissionais para as operações de campo somente em São Paulo.
Ainda, afirmou que mais que dobrou o número de sistemas de automação de rede na área da concessão de SP, que abrange a capital paulista e 23 cidades da região metropolitana, passando de 8.000 para mais de 21 mil.
A modernização de equipamentos ocorre, segundo o plano de investimentos de 2024 a 2026, com a ampliação da subestação da Vila Guilherme e a automatização desses equipamentos na cidade. A companhia também cita a intensificação dos mutirões de poda, que já realizaram de 450 mil procedimentos nas 24 cidades da área concessionada.
Outra diferença entre Brasil e Itália passa por regras de regulação. Desde a abertura do mercado, há quase 25 anos, a Arera (Autoridade Reguladora de Energia, Redes e Ambiente), equivalente à Aneel, utiliza um mecanismo de incentivos e penalidades, por meio de metas estipuladas anualmente, com o objetivo de diminuir a duração das interrupções da distribuição.
“Com essa visão gradual, a indústria tem a possibilidade de fazer investimentos sem penalizar os lucros e dar maior qualidade para os consumidores”, diz o professor Bollino. “Assim foi feito na Itália, com o nível de qualidade de serviço progressivamente melhorado.”
Mesmo assim, segundo dados da Arera, das nove operações com continuidade de serviço pior que a média nacional em 2022, sete eram responsabilidade da E-distribuzione. Na segunda pior das situações, aparece a atividade da empresa na região da Campânia, com 1 milhão de clientes e com 52 minutos de interrupção sem pré-aviso não inclui eventos climáticos excepcionais.
Ao confrontar os mercados na Itália e no Brasil, sem mirar em uma única empresa, chama a atenção a diferença dos preços da energia elétrica residencial. Em março deste ano, a Itália tinha um dos mais altos valores da Europa, com US$ 0,44 por kWh (quilowatt-hora), três vezes mais alto do que o preço médio no Brasil. No caso italiano, além de taxas e custos maiores dos serviços, influi a dependência do gás natural como fonte para a geração de eletricidade.
MICHELE OLIVEIRA / Folhapress