RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A tradição pictórica brasileira, que começou a se formar a partir do século 18, estabeleceu um diálogo entre a tradição católica europeia, com séculos de história, e as condições históricas brasileiras do período, criando algo novo.
Passados quase 300 anos, o artista David Almeida propõe um novo diálogo. Desta vez, estabelecendo um elo entre o século 21 e a tradição brasileira a partir de uma pesquisa pelas cidades mineiras da antiga Estrada Real –Ouro Preto, Mariana e Congonhas– e pela cidade do Cariri, no Ceará. As obras criadas a partir dessa investigação compõem a mostra “Vigília”, na galeria Millan, e trazem uma nova interpretação da tradição.
A individual está dividida em três partes. O teto da exposição é composto por painéis de madeira pintados à mão, que formam uma unidade. Os painéis, sem título, remetem às igrejas barrocas, com suas molduras e paisagens ermas em diálogo com o sagrado.
A principal influência veio da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, e da reflexão do artista sobre a obra do Mestre Ataíde. Nascido em Mariana em 1762, o pintor atuou nas épocas do Barroco e do Rococó e buscou reproduzir, em solo brasileiro, os cânones da pintura sacra católica.
“Uma das coisas que mais me atraiu no Mestre Ataíde é o fato de que aquelas imagens [criadas por ele] soam ‘erradas’ em comparação com o que acontece na Itália, por exemplo, tanto no sentido técnico quanto na produção do cânone.”
Ao mesmo tempo, as pinturas produzidas por Ataíde constituem “uma singularidade do que acontece no Brasil, uma tradução dessa importação de algo que não foi visto” em seu contexto original. “Essas imagens não vistas produzem uma nova imagem.”
Ataíde criou, entre outras, as imagens da nave da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto. As imagens da sacristia da igreja, por sua vez, não têm autoria confirmada, embora possam ter sido criadas pelo artista. Os painéis criados por Almeida dialogam com essas duas criações.
“Havia uma incongruência que começou a me interessar”, afirma Almeida. A pintura da nave, ele explica, “está muito mais elevada ao céu; tinha essa intenção de ilustrar o céu na cabeça do fiel”.
A pintura da sacristia, por sua vez, vai em sentido oposto, de “esmagamento”, e é composta por quatro quadrantes laterais com figurações de santos penitentes vivendo em paisagens ermas. Ao centro, há uma pintura da anunciação de São Francisco de Assis. “Essa elevação da nave, da pintura onde os santos estão sendo anunciados, dialoga com as imagens da sacristia.”
As imagens criadas por Almeida partem dessas paisagens da sacristia para formar cenários imaginários e molduras barrocas. A principal característica é valorizar o gesto da pintura mais do que a criação pictórica, sem o compromisso de criar algo dentro dos cânones da pintura, numa alusão ao que foi criado pelo Mestre Ataíde.
As pinturas do painel no teto dialogam, na mostra, com pequenas figurações de paisagens expostas em um dos extremos do espaço. Essas pinturas nas paredes remetem a uma antiga tradição católica popular e artística brasileira chamada de ex-voto. O termo vem do latim e significa “por força de uma promessa, um voto”. Nessa tradição, o fiel leva à sua paróquia objetos escultóricos ou pictóricos em retribuição a uma graça alcançada.
“Os ex-votos do Ceará, geralmente, são esculturas. Por exemplo, uma pessoa estava com o braço quebrado, fez uma oração, um pedido ao santo e, quando a oração foi atendida, entregou uma escultura de um braço, que foi para uma parede gigantesca de braços, como na igreja de Padre Cícero”, explica David.
No caso do ex-voto mineiro, as peças “eram pinturas, cenas”. “Era um recorte narrativo e, ao mesmo tempo, lavrado em cartório, confirmando que essa negociação com o divino aconteceu”, diz.
Na exposição, o que vemos são paisagens imaginárias, em pequenos formatos, que priorizam a velocidade de produção e a simplicidade das imagens.
“As pinturas de pequenos formatos vêm dessa minha rotina de percursos pelo Brasil. Não há nenhuma pintura feita imediatamente a partir de uma paisagem vista”, afirma.
As paisagens imaginárias, segundo o artista, nascem da relação entre seu olhar e repertório com determinada paisagem, criando uma nova paisagem a partir disso. Assim como artistas como o Mestre Ataíde criaram a partir das imagens sacras do catolicismo, embora sem contato com elas em seu espaço original.
As peças escultóricas, que ocupam o centro da exposição, são criadas a partir de objetos reais destinados a alguma forma de trabalho –como antigas formas para produção de sapatos e chapéus– que recebem intervenções do artista, adquirindo novo significado, agora artístico.
É o caso, por exemplo, de “Caixa de Joias”, uma forma de confecção de tijolos que recebeu uma pintura em sua tampa e a escultura de uma caveira em seu interior. Os objetos, datados dos séculos 18 e 19, foram coletados em suas viagens.
Ao recriar essas peças –por meio de pinturas, inserção de pequenas esculturas e alterações em seu formato original– o artista afirma trazê-las para o tempo presente, conferindo-lhes uma função semelhante à dos oratórios.
“Transformar [o objeto] em objeto de arte é dotá-lo de uma função semelhante à dos oratórios, que é a de receber o sensível do outro.”
Vigília
Quando: Seg. a sexta., das 10h às 19h. Sáb, das 11h às 15h. Até 9 de novembro
Onde: Galeria Millan- rua Fradique Coutinho, 1.430, Pinheiros
Preço: Gratuito
DANILO THOMAZ / Folhapress