Conheça Vilma Eid, galerista que viu valor na arte popular e atiçou a cobiça do circuito

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos anos 2000, Vilma Eid, fundadora da galeria Estação, recebeu uma ligação de Paulo Vasconcellos, respeitado antiquário paulista. Um homem estava vendendo algumas estátuas em Osasco. Quando ela viu as figuras humanas de olhos puxados e cabelos negros, retalhadas na madeira a golpes retos, não teve dúvidas. Comprou todas.

Eram obras de Conceição dos Bugres, hoje reconhecida como uma das principais artistas do Mato Grosso —e algumas das peças adquiridas por Eid foram tombadas. Em 2021, o Masp abriu uma exposição dedicada à escultora indígena e autoditada, morta em 1984, na esteira de um movimento mundial nas artes que destaca artistas antes fora do canône.

Desde então, Eid comprou outras obras de Conceição, e sete delas compõem a mostra “Metamorfoses e Distâncias”, que celebra os 20 anos da galeria Estação, dedicada à arte popular brasileira, junto ao novo livro “Moderno Contemporâneo Popular Brasileiro: O Olhar de Vilma Eid”, que detalha o garimpo da galerista que realocou no mercado artistas antes ignorados pelo circuito das artes.

Vestindo um colar de retângulos acrílicos amarelos, em harmonia com uma malha da mesma cor, Eid lembra que a galeria fez uma exposição individual de Conceição dos Bugres em 2017, antecipando em quatro anos a feita no Masp.

Adriano Pedrosa, hoje diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo e curador da última Bienal de Veneza, dedicada àqueles que foram excluídos do circuito das artes por décadas, era um frequentador assíduo da galeria —quando a arte popular ainda não tinha um espaço garantido nos museus, tampouco um valor considerável no mercado.

“A arte popular vivia em uma gaveta. Agora, finalmente, estão enxergando que há artistas autodidatas e muito bons”, diz Eid. “Os artistas brasileiros têm cores e humor próprios. Hoje, felizmente, está começando a descentralizar, a cena artística no Nordeste está bombando, por exemplo.”

A região foi o maior destaque da SP Arte Rotas Brasileiras, feira que se dedica, há três anos, a apresentar artistas de diferentes regiões do país ao mercado sudestino e internacional.

Mas, há 20 anos, quando abriu a Estação, Eid ficou quatro anos sem vender uma única obra.

Antes disso, na década de 1980, quando quase não existiam galerias de arte em São Paulo, ela foi sócia de Vasconcellos, o antiquário, em outra galeria, que fechou as portas durante o governo de Fernando Collor. Foi ali que Eid decidiu largar os negócios da família, a rede de supermercados Gigante, para se dedicar à arte, uma paixão herdada da mãe, a escultura libanesa Odette Eid.

Em 1971, Odette levou a filha na galeria Cosme Velho, para que ela escolhesse um presente —seu primeiro quadro. “Fiquei muito impressionada. Naquela época não se usava luz lavada, mas focos de luz. Era dramático. Vi um quadro de boizinhos em uma relva, e meu olho grudou nele”, lembra. O galerista, porém, a desincentivou a levar a pintura. “Ele disse que era um artista primitivo, como se dizia na época, e não sabiam se daria certo.”

Foi aconselhada a levar a obra de um artista mais considerado mais moderno, mas que nunca deslanchou. Anos mais tarde, quando já era galerista, descobriu que o saudoso gado, iluminado em sua memória pelos holofotes teatrais de uma cidade ainda com pouco espaço para a arte, eram uma criação de José Antônio da Silva.

“Comecei a viajar muito, especialmente pelo Norte e Nordeste, para conhecer artistas e comprar, comprar e comprar”, diz. Comprou um galpão em Pinheiros apenas para expor as obras ao público, mas depois se convenceu sobre a necessidade de vender. O espaço começava a ficar pequeno, e crescia sua inconformidade diante do baixo interesse sobre artistas de fora do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Em uma viagem ao Recife, conheceu José Bezerra –na época, chamado de artesão. Começou a comprar “caminhões” de suas obras, e pediu que o entendedor de arte contemporânea Rodrigo Naves curasse uma exposição de Bezerra na Estação. Foi um sucesso: o nome de Naves atiçou os consagrados do meio, e estava dada a fórmula para atrair o interesse do público.

As exposições foram realocando artistas não canônicos do século passado no circuito sudestino de museus e galerias. Exemplos foram também Maria Auxiliadora e Madalena dos Santos Reinbolt.

Eid lembra que demorou 30 anos para juntar dez obras de Reinbolt. “Vendi tudo, por R$ 25 mil cada. Hoje, cada uma vale R$ 400 mil”, diz ela, dando risada.

A valorização veio após uma mostra da artista baiana no Masp, em 2022, dois anos após a coletiva “Mulheres na Arte Popular”, na Estação. Agora, a nova aposta de Eid é Cardosinho, que pintou paisagens cariocas com detalhes milimétricos no final do século 19.

“O Masp se tornou um grande incentivador. Grandes artistas modernistas tinham coleções fabulosas de arte popular. E os contemporâneos beberam dessa fonte”, diz Eid, citando nomes como dos de Farnese de Andrade e Efrain de Almeida.

A regra não vale só para o Brasil. Basta lembrar das vanguardas europeias do século 20, quando artistas como Alberto Giacometti e Pablo Picasso se inspiravam em criações de povoados indígenas, africanos ou do leste asiático para reinventar a história da arte.

Muitos artistas expostos em “Metamorfoses e Distâncias”, como o mineiro Artur Pereira, que esculpia inteiros presépios e povoados em um único bloco de madeira, ou o baiano Alcides Pereira dos Santos, criador de pinturas enormes, coloridas e melancólicas, tinham problemas psiquiátricos nunca diagnosticados ou viveram isolados socialmente.

São nomes que custaram ser reconhecidos no meio artístico, mas que agora são destaques de exposições do calibre da Bienal de São Paulo, que no ano passado dedicou parte considerável de seu espaço a nomes como Judith Scott, Aurora Cursino, Ubirajara Ferreira Braga e o próprio Bispo do Rosário.

A chamada arte bruta na Europa ou outside art, nos Estados Unidos, termo usado para definir criações daqueles que não estão inseridos no meio artístico e que são autodidatas, tem despertado cada vez mais interesse de galerias e museus, segundo Eid, que hoje representa nomes como Santidio Pereira, André Ricardo e Véio, que levará para a Art Basel, em Miami, no próximo mês.

“Há uma busca evidente pela raiz da arte brasileira. Antigamente era arte para botar na fazenda ou na praia. Mas hoje mudou muito.”

METAMORFOSES E DISTÂNCIAS

– Quando De seg. a sex., das 11h às 19h. Sáb., das 11h às 15h. Até 31/01

– Onde Galeria Estação -r. Ferreira de Araújo, 625, São Paulo

– Preço Grátis

– Classificação Livre

MODERNO CONTEMPORÂNEO POPULAR BRASILEIRO: O OLHAR DE VILMA EID

– Preço R$ 199 (320 pág.)

– Autoria Nelson Kon, Lorenzo Mammì, Germana Monte-Mór e Daniel Rangel

– Editora WMF Martins Fontes

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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