SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Partido Democrata perdeu eleitores negros nas últimas três eleições presidenciais. Em 2016, teve 92% dos votos neste eleitorado, 90% em 2020 e 85% na disputa de 2024 em que Kamala Harris perdeu do republicano Donald Trump.
Trata-se de um percentual do eleitorado negro norte-americano que oscila entre 83% e 95% desde as eleições de 1964. Naquele ano, eleitores negros abandonaram em massa o Partido Republicano para eleger o presidente Lyndon Johnson (1908-1973) com 94% de seus votos.
Não é coincidência que 1964 tenha sido o ano de aprovação da Lei de Direitos Civis, assinada por Johnson –que assumira a presidência após o assassinato de John Kennedy, em 1963.
A lei acabava com a discriminação de raça, cor, religião ou origem nacional, garantindo direitos iguais de voto. Com isso, permitiu o registro de eleitores negros, incrementado pela lei do direito ao voto, de 1965. Desde então é uma parcela tida como garantida pelos candidatos democratas.
Grande parte da erosão no apoio de eleitores negros a Kamala e seu partido, apontam analistas, é motivada por uma percepção cada vez mais forte de que os democratas não cumpriram suas promessas.
A ainda larga vantagem democrata entre eleitores negros foi reduzida tanto entre homens como entre mulheres desde 2016. Naquele ano, a vantagem de Hillary Clinton sobre Trump foi de 90 pontos percentuais entre mulheres negras e de 69 pontos entre os homens. Em 2020, ela caiu para 81 entre mulheres e 60 entre homens. Finalmente, em 2024, Kamala teve 84 pontos de vantagem entre as mulheres e 56 entre os homens negros, segundo dados de pesquisas de boca de urna realizadas na última terça (5) e ainda sujeitas a alguma alteração.
Com isso, o voto negro em candidato democrata nas últimas três eleições presidenciais perdeu 5 pontos entre mulheres e 11 pontos entre os homens.
“A liderança democrata entre os homens negros continua a diminuir com o tempo. Não observamos uma queda tão grande entre as mulheres negras “, afirma o cientista político Jonathan Hanson, professor de estatística da Universidade de Michigan.
Alessandra Devulsky, professora de direito da Universidade do Québec, em Montreal, e pesquisadora de gênero e raça, explica que “pessoas racializadas não vivem só dessa identidade” e que, portanto, a identidade racial dos eleitores não pode ser interpretada de forma isolada.
“Não existe nenhuma associação possível entre projeção identitária e um homem branco que fica laranja porque faz bronzeamento artificial”, ironiza.
“Como mulher negra, isso [o aumento do voto de homens negros em Trump] me incomoda”, admite. “Mas, como pesquisadora, vejo um descolamento do partido democrata daquilo que a classe trabalhadora realmente precisa, como crédito e emprego. E, ao mesmo tempo, a uma visão de mundo alinhada ao partido republicano.”
Professor de direito na Universidade Howard e especialista em teoria racial e movimentos sociais, Justin Hansford avalia que Trump teve maior apelo junto aos homens negros porque evoca um tipo de masculinidade para a qual os democratas não apresentam alternativas. “Muitos homens, em 2024, se importam mais com a questão de gênero do que de com a questão da raça”, afirma.
Para Kendall Thomas, professor de direito da Universidade Columbia, em Nova York, especialista em teoria crítica de raça, feminismo e sexualidade, enquanto tradicionalmente avalia-se que as pessoas votam de acordo com seus interesses, hoje em dia muitos acreditam que as pessoas votem de acordo com a sua identidade.
“Mas o que [o sociólogo] Stuart Hall apontou é que o negócio da política é mais sobre a maneira como as pessoas imaginam a si mesmas. E, portanto, isso tem a ver com essa luta em torno de como nós, nos Estados Unidos, nos imaginamos.”
Segundo Thomas, há um conflito de “histórias sobre o que é esta nação e o que ela deve se esforçar para se tornar”. “Trump está contando uma história que romantiza os dias em que os Estados Unidos eram uma república racial governada por o que equivalia a uma superclasse de nossos cidadãos brancos da Costa Leste que utilizou como arma a lei e a política para excluir da participação de quem não fosse branco”, avalia.
“A história dos Estados Unidos no século 20 e, certamente, desde a aprovação da Lei do Direito ao Voto, é a história de uma longa luta de um país que foi fundado como uma república racial e de seu esforço para se tornar uma democracia multirracial.”
FERNANDA MENA / Folhapress