Virginie Despentes, ícone feminista, lida com a raiva criando papo com machista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Virginie Despentes está há três décadas amolando uma faca na literatura. Sua fúria já estava afiada em “Baise-Moi”, história de vingança com a qual estreou em 1993, e no seu livro mais célebre no Brasil, “Teoria King Kong”, um manifesto em que se firma como a voz de “todas as excluídas do mercado da boa moça”.

Agora ela reflete mais detidamente sobre essa ira, compondo uma resposta inesperada às violências a que mulheres são submetidas no novo “Querido Babaca”.

Quase um romance epistolar, ele é composto de trocas de mensagens agressivas entre pessoas que se detestam, fazendo surgir um longo diálogo sobre o que nos aproxima. Lidar com a raiva, então, vira um exercício de se ver pelos olhos do outro.

“Não acho que seja uma situação muito realista”, conta a autora de 55 anos à reportagem. “Mas me pareceu interessante me debruçar em algo que não seja de mais conflito, de mais impossibilidade de comunicação. Tinha a sensação de estar saturada com negatividade.”

E é mesmo, num primeiro momento, uma situação pouco imaginável a que ela cria em “Querido Babaca”, sucesso de vendas na França que chega ao Brasil pela editora Fósforo. Oscar, um escritor de meia-idade que já teve algum sucesso na carreira, é acusado de assédio por uma ex-funcionária, Zoé, que mantém um blog na esteira do movimento MeToo.

Em meio às acusações, Oscar escreve um comentário mal-educado nas redes sociais sobre a aparência de uma atriz famosa, Rebecca, que lida com o envelhecimento do próprio corpo. Ela o responde, e é este o estopim de longos emails entre os dois. As mensagens se tornam depoimentos sobre suas próprias falhas e misérias.

“Eles abandonam cada vez mais a aparência e se apresentam o máximo possível. Não necessariamente na sua força, na sua glória, na sua certeza. Pelo contrário. Eles contam com o olhar do outro”, ela diz.

Esse olhar, com frequência, é ácido. Como o próprio título do livro entrega, o “babaca” não sai de cena mesmo como interlocutor, e reforça a embocadura feminista da obra de Despentes. Rebecca, atriz que não é próxima do debate sobre assédio no cinema, diz em determinada altura que a blogueira fala uma língua que ela aprendeu a ouvir. “A língua das meninas raivosas.”

“A consequência mais importante do MeToo foi as mulheres terem começado a ouvir outras mulheres sem passar pelo crivo das instituições, dos homens”, avalia a escritora. “Houve um backlash, reações negativas. Mas, ao mesmo tempo, agora com o julgamento da Gisèle Pelicot, por exemplo, eu vejo muitos homens e mulheres presentes, que aparecem e que querem que isso pare.” A autora se refere ao caso da francesa de 71 anos que passou anos sendo dopada pelo ex-marido e estuprada.

A internet é peça fundamental desse movimento, mas também um ambiente de ódio. É a contradição que ela tenta retratar através de Zoé. “Tenho a impressão de que elas aprendem a se proteger, mas, de qualquer forma, o nível de violência é elevado. O que me preocupa é que, para as mulheres jovens, é como se fosse normal ser exposto a este nível de violência”, diz.

Ainda que as redes sociais sejam impiedosas, e que muitos jovens estejam lá só em busca de likes, a escritora acompanha com empolgação os questionamentos da geração Z sobre trabalho, saúde mental e sexualidade. Questões que, ela defende, não foram feitas por sua geração. “Nós deixamos as pessoas dessa geração conviver com um ultraliberalismo que não teríamos conseguido enfrentar.”

Nesse caldo de revolta pública, pano de fundo do romance, Despentes mobiliza dispositivos que aproximam antagonistas sem ser condescendente. O vício em drogas, a pandemia e, sobretudo, a origem dos personagens marcam essas inflexões.

“Eles vem de um lugar particular da França, do leste do país, que é de onde eu venho. Uma região que não preparou nenhum dos dois para a notoriedade”, ela diz. Um lugar que não molda as pessoas para serem escritores ou atrizes. E um ressentimento de classe atravessa os personagens.

Oscar confessa que, quando volta para visitar a família, vê as casas de sua infância com o olhar dos outros e enxerga um estado de abandono. Também reclama da posição das mulheres que falam sobre o assédio de que é acusado: “Todas essas universitárias, essas filhinhas de advogados e de produtores saíram da manicure para me atacar na internet”.

Em alguma medida, Despentes estende neste romance o centro de “A vida de Vernon Subutex”, trilogia publicada antes de “Querido Babaca” que esquadrinha a França contemporânea e aproxima personagens que parecem indefensáveis. A escrita epistolar, no entanto, dá uma outra camada para a investigação social de Despentes.

A escritora de 55 anos —que, admite, não troca cartas com mais ninguém— vê na correspondência uma forma particular de expressão que se perdeu. Não são diálogos porque não somos interrompidos. Não são monólogos porque falamos com alguém. “E, ao mesmo tempo, nós descobrimos coisas sobre as quais não pensávamos sem escrever.”

O que os personagens descobrem espelham as contradições do nosso tempo, como se todo leitor pudesse encontrar em ao menos um fragmento dos depoimentos um reflexo de si.

Despentes se interessou em investigar, a partir de Oscar, o momento em que percebemos que abusamos do nosso próprio poder. “Apesar de, no livro, ser um poder masculino, isso não me impede de refletir sobre o que nos tornamos, se continuamos a nos portar como se tivéssemos 20 anos”, conta. “Não posso mais sentir a raiva que eu tinha como quando eu era muito jovem.”

Os personagens de “Querido Babaca” atravessam uma pandemia com suas confissões, e uma esperança com um novo mundo pós-confinamento parece emergir. Uma visão de que as prioridades sociais e econômicas podiam mudar diante de uma catástrofe coletiva, desejo que já parece distante. Mas Despentes defende que não temos outra coisa senão essa esperança e experiência comuns.

“Isso significa que podemos decidir sobre uma greve geral global, por exemplo. Podemos decidir que essa história de super ricos já deu”, ela diz.

“Agora é um desastre, é verdade. Mas a esperança é um exercício de imaginação. De imediato, as coisas não acontecem do nosso jeito, mas isso não significa que sabemos o que acontecerá em dez anos. Prefiro manter a esperança porque é importante, porque é político.”

QUERIDO BABACA

– Preço R$ 89,90 (280 págs.); R$ 62,90 (ebook)

– Autoria Virginie Despentes

– Editora Fósforo

– Tradução Marcela Vieira

CAROLINA MORAES / Folhapress

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