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A culpa sempre é da imprensa

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No final de maio de 1992, os veículos de imprensa brasileiros divulgaram entrevista de Pedro Collor, já falecido, irmão do então presidente Fernando Collor de Mello, em cujo teor havia denúncias de corrupção na gestão do colateral. Começava naquele momento a derrocada do governo Collor, com o início do processo de impeachment.

O trabalho da grande mídia teria inspirado os “cara pintadas”, e a situação do “caçador de marajás” ficou insustentável. Analistas políticos diziam abertamente que o universo midiático fora o responsável pela ascensão e queda de Collor.

De fato, naquela eleição, com candidatos de peso, como Mário Covas, Ulisses Guimarães, Leonel Brizola e outros, sobraram no segundo turno Fernando Collor e Lula, numa polarização semelhante à que ocorreu nas últimas eleições, e Lula não tinha a simpatia dos grandes veículos de comunicação. Ao depois, a boa cobertura do escarcéu prestou imensa colaboração para a queda de Collor. Tudo culpa da imprensa.

No ano de 2005, Luiz Inácio Lula da Silva ficou na corda bamba, após o estouro do mensalão, cujo escândalo consistiu na ampla distribuição de dinheiro a parlamentares em troca de apoio ao governo do PT. Um dos operadores do esquema, o Marcos Valério, está preso até hoje. Outros petistas participantes da tramoia, como José Dirceu, nome de peso no governo petista, foram cassados e presos. Parlamentares que se deleitaram com aquela farra tiveram o mesmo destino de Dirceu. Lula, o “ingênuo habilidoso”, se safou porque nada sabia sobre o artifício criminoso que veio à tona.

Pergunta-se: será que esse “seleto” grupo de políticos teria sofrido as drásticas consequências que sofreu não fosse o diuturno acompanhamento e divulgação do caso pela imprensa? Se acharmos que poderia ter sido diferente, vamos chegar à conclusão de que boa parcela de culpa foi da imprensa.

Em março de 2014, começava a operação “Lava Jato”, considerada a iniciativa mais relevante, em todos os sentidos, de combate à corrupção no Brasil. A maior estatal do País – a Petrobrás foi saqueada. Uma metástase corrupta, que envolvia agentes da própria empresa, membros do Executivo, Deputados, Senadores, grandes empreiteiras, doleiros e outros tantos agentes sugou muito dinheiro público. Estima-se que mais de 140 bilhões de reais foram desviados da Petrobrás para contemplar os corruptos. O Governo era o de Dilma Rousseff, e a partir da ampla divulgação do escândalo e suas consequências, começou o caminho do impeachment.

Tudo bem que o impedimento da Presidenta se baseou nas chamadas “pedaladas fiscais”, que consistiam na edição de créditos suplementares sem a autorização do Senado, e em operações de crédito com instituição financeira controlada pela União, mas duvido que Dilma teria caído não fosse a “lava jato” e a indignação do povo com o esquema criminoso que varria os cofres públicos. É possível que a revolta de boa parte da população e o consequente envenenamento do Congresso (sabe-se que o povo nas ruas envenena os políticos) não tivessem ocorrido, não fosse as denúncias e os desdobramentos do caso, noticiados diuturnamente pela imprensa. Poxa, mais uma vez culpa da imprensa?

Na sequência foi a vez de Michel Temer, o Vice que assumiu o posto de Dilma. Em 17 de maio de 2017 veio à tona o “escândalo da JBS”, envolvendo o próprio Presidente, os irmãos Batista, parlamentares e o BNDES, dentre outros atores. Temer, que havia conseguido uma pequena reação da economia do País, e que certamente já estava com a cabeça numa possível reeleição, despencou.
Se a gestão Temer não tivesse sido tão breve como foi, um terceiro caso de impeachment poderia ter acontecido na Nova República. Mais uma vez a indignação tomou conta do povo brasileiro, sobretudo com as notícias que diariamente chegavam aos cidadãos pelos veículos de imprensa.

George Orwell dizia que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. Por certo, nos episódios aqui sintetizados os protagonistas dos governos fracassados atribuíram grande parte da culpa do resultado desastroso à imprensa. Tudo bem, sabemos que é da índole do ser humano sempre atribuir a outrem a culpa por suas desventuras e seus infortúnios. Porém, uma circunstância comum nos casos mencionados foi a de que a Constituição da República foi respeitada no que concerne à liberdade de imprensa. Não houve censura e nem perseguição aos veículos de comunicação.

Hoje, os tempos são outros.

O atual inquilino do Palácio do Planalto não passa um único dia sem agredir e ameaçar órgãos de imprensa. Afinal, Bolsonaro já declarou que é a Constituição, acrescentando que o “povo” e as forças armadas estão com ele. A paciência do Presidente acabou. Portanto, publiquem o que quiserem, desde que não seja contrário aos interesses dele. Se o contrariar ele manda calar a boca e ameaça não renovar concessões televisivas. Seu exemplo vem sendo seguido à risca por membros de sua equipe e por seu fanático exército de tietes.

O discurso raivoso do líder tem levado seguidores a praticar agressões físicas contra jornalistas, como aconteceu dias atrás, tendo como vítima Dida Sampaio, repórter fotográfico do “Estadão”. Inspirada no mau comportamento do líder, até Regina Duarte, a “namoradinha do Brasil”, soltou sua ira contra jornalista da CNN, quando divulgadas críticas à sua gestão por uma ex-colega de “Globo”. E justo a CNN, que na expectativa do Presidente haveria de ser um órgão “simpático” ao seu governo. Esqueceu-se de que lá tomam assento excelentes jornalistas, que não se curvam às bravatas presidenciais.

A mania de Bolsonaro, incompatível com o espírito libertário de nossa Constituição Federal, de atacar veículos de imprensa não tem contaminado apenas membros da corte presidencial. Em tempos de pandemia, Governadores e Prefeitos vêm usando e abusando das entrevistas coletivas, e alguns de viés autoritário se rebelam contra perguntas que os incomodam, que o diga o competente repórter Correa Júnior.

Não é difícil concluir que, em regra, governantes não toleram o princípio constitucional da transparência e, por óbvio, a imprensa incomoda, porque sua atuação implica em dar luz a fatos e circunstâncias. Estou certo de que o direito de resposta, na mesma proporção do suposto agravo, assim como o direito à indenização por eventuais danos morais, postulados garantidos por Lei, são de pleno conhecimento da classe política, mas isso não resolve na concepção dela. O que resolveria é a intransparência. Porém, esse anseio de se ocultar o que não é de seu interesse é incompatível com os fundamentos do Estado Democrático e de Direito. Pretender obstaculizar o livre trabalho da imprensa significa andar na contramão da democracia. Em países onde não existe imprensa livre, há ditadura. Vide China, Coréia do Norte, Cuba e Venezuela.

É bom que se diga que esse texto não é um libelo em favor de veículos de imprensa, até porque sabe-se que muitos deles pecam pela falta de ética e por nutrirem interesses outros, que não a busca da verdade da informação. Afinal, como dizia Albert Camus, “uma imprensa livre pode ser boa ou ruim, mas, certamente, sem liberdade, a imprensa será sempre ruim”.

O objetivo, a propósito, foi o de chamar a atenção para a relevância da instituição imprensa, cuja liberdade de manifestação é fundamental para a mantença do Estado Democrático e de Direito.