BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – cada cinco anos Berlim comemora o aniversário da queda do muro. O colapso da edificação, o fim de uma Alemanha dividida e também da guerra fria, do comunismo e até da história, como escreveu Francis Fukuyama, é celebrado neste fim de semana por quatro quilômetros de cartazes e uma playlist, a “trilha sonora da liberdade”.
Estão lá hinos de diversas gerações, como “Heroes”, de David Bowie, morador da cidade nos anos 1970, e “People Have The Power”, de Patti Smith, de 1988. Um ano antes do muro cair, as rádios já diziam que o povo tinha o poder.
O povo neste ano foi convidado a se manifestar. Um projeto estimulou a confecção de 5.000 cartazes em escolas, clubes e empresas. Valia qualquer coisa relacionada ao tema “Defender a Liberdade”. As peças estão desde o meio da semana alinhadas como um muro, por onde ele passava, no coração da cidade: da Hauptbahnhof, a estação central, ao Checkpoint Charlie, o posto de controle da zona americana, hoje uma alegoria montada para turistas.
O trânsito foi interrompido por todo o trajeto, que conta com diversos tipos de instalações, como telões, palcos, espaços de leitura e debate, estrutura para suportar milhares de visitantes. Em frente ao portão de Brandemburgo, onde o muro parecia mais acintoso, por separar metade de Berlim de seu maior monumento, e onde Ronald Reagan pediu a Mikhail Gorbachov que o derrubasse, a vez é de Alois Cheret, 10. “Nunca mais um muro deve ser erguido”, diz o estudante em seu desenho.
O muro não existe mais, mas suas cicatrizes na cidade são evidentes. “São muitas, emocionais, pessoais. A ideia de se livrar do governo na Alemanha Oriental não estava automaticamente alinhada com a reunificação. Já a Ocidental viu o protesto contra o regime como um clamor pela reunificação. Porém não foi uma reunificação, foi uma tomada de poder”, afirma Wilfried Wang, do escritório de arquitetura berlinense Hoidn Wang Partner.
“Se você olhar para o que restou da Alemanha Oriental, cultura, regulamentos, símbolos, arquitetura, muita coisa foi removida. Até nomes de ruas foram trocados. Só duas coisas ficaram, na prática: a regra de poder virar à direita no vermelho e o sinal de pedestres”, relata Wang, com longa atuação acadêmica em Harvard e na Universidade do Texas, em Austin. “O resto desapareceu.”
O sinal de pedestres é um hit entre turistas. O bonequinho que indica a hora de ficar parado ou andar usa uma espécie de chapéu ou capacete, um proletário. Virou souvenir, tem até loja própria.
Wang faz parte de conselhos de preservação da cidade e participou com a sócia, Barbara Hoidn, de um concurso internacional, Berlin 2070, que pedia um plano diretor de décadas para a capital alemã. “Imaginamos torres altas, o que é palavrão por aqui”, brinca.
Grandes conjuntos habitacionais eram uma marca da DDR, a sigla em alemão para República Democrática da Alemanha. “Horríveis, mas os do lado ocidental não eram e não são muito melhores. A ideia modernizadora e tecnocrata da reunificação ignorou diferenças culturais e conquistas dessa outra Alemanha. Só que essas biografias alemãs têm continuidade, como se deu com o nazismo depois da guerra. Isso explica os votos da AfD nos estados que compunham o lado oriental.”
“São também votos de protestos contra o establishment ocidental.”
AfD, Alternativa para Alemanha, é a legenda de extrema direita que nesta semana anunciou a expulsão de três integrantes presos por suspeita de tramar um golpe de Estado e a volta do nazismo. É também o partido que, fossem as eleições parlamentares realizadas hoje, levaria 17% dos assentos, segundo as últimas pesquisas.
É um ponto percentual a mais do que alcança o SPD, do chanceler Olaf Scholz, bombardeado pela oposição neste momento para antecipar as eleições. A CDU, o partido conservador que lidera as intenções de voto, exige que o primeiro-ministro se submeta a um voto de confiança do Parlamento nas próximas semanas.
Ainda que a matemática parlamentar alemã minimize a chance de uma coalizão de governo com a AfD, só a possibilidade assusta o país, por motivos óbvios. Assim como a Europa, que vivencia a expansão do bloco de extrema direita no continente.
A provável derrota de Scholz na votação iniciaria um prazo regimental de 60 dias para as eleições. O chanceler quer fazer o rito apenas em janeiro, após a aprovação do Orçamento, do pacote de apoio à Ucrânia e de medidas de reaquecimento da economia.
O impasse político mistura oportunismo eleitoral, governo impopular, estagnação econômica, infraestrutura defasada e uma guerra comercial com a China. Para completar, os EUA elegeram Donald Trump, que promete sobretaxar a importação de quase tudo. Em discurso de campanha, deu como exemplo “carros alemães”.
“Há essa ideia de paisagens urbanas carrancudas naquilo que era a Alemanha Oriental. Gastaram um monte de dinheiro, muita tinta, mas de fato elas persistem. Só que não são diferentes das que percebemos em subúrbios de cidades do lado ocidental, como Dortmund, alicerçadas em políticas ultrapassadas, baseadas na indústria do carvão, de carros com motor à combustão. É isso o que deveria estar sendo discutido, não maquiagens”, afirma Wang.
Alemanha é o país do carro. Talvez por isso Alois, o menino do cartaz, tenha desenhado também um carro em seu manifesto. Porém o futuro é do carro elétrico, e ele vem da China.
JOSÉ HENRIQUE MARIANTE / Folhapress