Flup 2024, com domínio da mulher negra, questiona o que pode uma festa literária

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ninguém precisou mencionar eleições para que Mame-Fatou Niang, professora franco-senegalesa responsável pela curadoria internacional da Flup, começasse a falar em Donald Trump.

Afinal, era quarta-feira (6) de manhã e a notícia de sua recondução à presidência americana estava em todos os lugares. Niang estava prestes a escrever a seus alunos —ela dá aulas numa universidade da Pensilvânia— para dizer que o sentimento que a tomava não era de resignação, mas de aceitação.

“Quando você não aceita a situação, não percebe que há algo quebrado que precisa ser consertado”, diz ela, na entrevista por vídeo. “Ter Trump ali é extremamente problemático, mas eleição é uma vez a cada quatro anos. Há tanta vida política acontecendo na sua cidade, no seu bairro. É por isso que você faz coisas como a Flup.”

Se parece que a professora mudou bruscamente de assunto, é preciso olhar com mais atenção ao que ela e outras quatro curadoras brasileiras estão preparando para a Flup, a Festa Literária das Periferias, que começa sua programação gratuita nesta segunda-feira no Rio de Janeiro.

Com espinha dorsal na homenagem a Beatriz Nascimento, intelectual que defendeu uma “história feita por mãos negras”, o programa apresenta forte predominância de mulheres negras —elas são mais de 90% dos nomes confirmados nesta edição.

Entre elas, há expoentes da literatura internacional —como a britânica Bernardine Evaristo, a primeira mulher preta a ganhar o Booker, e a francesa Marie NDiaye, vencedora do Goncourt— e nacional —como Conceição Evaristo e Luciany Aparecida. Mas ali se revela uma concepção mais ampla de festa literária.

Primeiro, pelo perfil da intelectualidade reunida, que inclui a ex-ministra francesa Christiane Taubira, que comandou a pasta da Justiça no governo François Hollande, a socióloga nigeriana Oyeronke Oyewumi, do referencial “A Invenção das Mulheres”, e a líder indígena Elisa Loncón, professora mapuche que presidiu a Constituinte do Chile.

Mas também por um traço histórico da Flup de entender que um evento literário é também slam —a poesia falada de embocadura próxima ao rap— , música e dança. As mesas literárias se revezam com mesma relevância no programa com tambor de crioula, batalha de passinho, Ilê Aiyê e Dona Onete.

É uma linha curatorial que faz pensar o que pode ser um festival literário, desafiando a velha ideia da torre de marfim em que intelectuais iluminados discorrem sobre o mundo, à parte dele.

Niang retoma a “figura-mãe” de Beatriz Nascimento. “Agora que ela está sendo estudada em universidades e será traduzida pelo mundo, é importante que não se mantenha só como objeto de um festival literário de classe alta. Porque as lições dela eram lições de vida, do dia a dia, de uma mulher normal falando para outras.”

A jornalista Bianca Santana, que tem atuado como curadora em festivais como o de Itabira e do Museu Judaico em São Paulo, lembra como ficou impressionada em sua primeira ida à Flup, quando enxergou “a favela num festival literário”.

Escolhas como a da festa deste ano, com tamanha prevalência de mulheres negras, para ela revelam uma intenção deliberada de questionar o que era universal nas letras até agora. “Já foram feitos tantos festivais só com homens brancos, e isso era narrado como algo natural, como se só eles fizessem boa literatura. Mesmo que uma opção dessas seja inconsciente, é política.”

Santana aponta que a Flip, pioneira entre os festivais literários a partir de 2003, era no começo uma festa de “senhoras ricas aposentadas”, uma classe média alta que gozava do “privilégio do privilégio”.

As coisas mudaram, muito por pressão de movimentos sociais inconformados, e uma inflexão veio com a edição que, sob curadoria de Joselia Aguiar em 2017, aumentou a presença negra e deu destaque a uma mesa com Ana Maria Gonçalves, de “Um Defeito de Cor”, e uma Conceição Evaristo longe do vasto reconhecimento de público que tem hoje. Essa virada, diz Santana, veio também porque outros eventos como a própria Flup já proliferavam.

Aguiar é defensora de que festivais possam “correr riscos e criar outro tipo de pensamento curatorial”. “As festas podem escolher reproduzir o que há nas livrarias ou fazer trabalhos de pesquisa, de novidades e propostas que não estão sendo vistas no mercado.”

“Existem modelos interessantíssimos de festa literária, não precisa ser uma pauta jornalística”, continua Aguiar, se referindo a assuntos ligados aos acontecimentos da hora. Como exemplo, ela cita uma feira europeia chamada Babel que a cada ano escolhe um tema —”na vez em que estive lá foi o luto, o fim das coisas”.

“Pode ser uma pauta de lançamentos, sim, ou buscar outras questões que têm a ver com a literatura e com o mundo, mas que não estão sendo discutidas nos jornais. Só que a imprensa precisa de lide, e uma festa literária sem lide é ruim para ter uma cobertura bacana.”

A cena dos festivais dissemina cada vez mais eventos pelo Brasil —de Araxá a Petrópolis, de Pomerode a Cachoeira, no Recôncavo Baiano, muitos deles evocando o “fli” da festa de Paraty. Alguns refletindo gostos mais comuns, lembrando o valor que há em promover o encontro de autores com seus leitores, outros buscando diferenciais.

Ana Lima Cecilio, curadora da última Flip e que será reconduzida para a edição de 2025, tem reforçado que privilegia um “olhar de livreira”, buscando o “ponto de contato entre o que se produz e o que os leitores querem”.

A figura do autor homenageado, diz ela, serve para apontar diretrizes —neste ano, João do Rio deu a senha para temas como “a rua, a festa, a resistência”. Mas, segundo Cecilio, “não é saudável fechar a Flip num tema”. “É bom amplificar os assuntos possíveis, assim se diversifica o público e as editoras.”

Ela afirma que sua proposta não é refletir o mercado, ainda que reconheça como o evento alimenta e é alimentado por ele, “mas os interesses fundamentais para compreender o mundo louco em que vivemos”.

Quando o repórter comenta com Mame-Fatou Niang, curadora da Flup, que uma festa literária pode ser vista pelo público como uma atividade superficial demais para contar como atuação política, ela tem uma resposta na ponta da língua.

“Pense nos Estados Unidos. Na Flórida, estão banindo livros. Esse é um país em que você pode andar com uma AK-47, mas as pessoas têm medo de um livro. Não gosto de usar a palavra arma, mas o livro é uma ferramenta que tornamos mais eficiente permitindo a palavra circular de um país a outro.”

“Se você aceita, se para de lutar e sonhar, então quem persegue você venceu”, continua. “E é isso que a literatura faz, ela imagina possibilidades, imagina um futuro. Pode ser até um futuro pior que hoje. Mas, ei, vamos criá-lo.”

FESTA LITERÁRIA DAS PERIFERIAS

– Quando De seg. (11) a dom. (17), das 13h às 22h30

– Onde Circo Voador, na rua dos Arcos, Rio de Janeiro

– Preço Grátis

WALTER PORTO / Folhapress

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