SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para aqueles que pouco o conhecem, Bruce LaBruce não passa de um provocador que prensou seu nome na indústria cinematográfica ao filmar transas catárticas e fetiches desavergonhados. Mas quem de fato mergulha na filmografia do canadense sabe que, em meio aos gemidos, declarações políticas querem ser ouvidas.
Não é diferente em seu novo filme, “O Intruso”, que usou sua expertise pornográfica para atacar um dos temas mais quentes nas campanhas políticas do Hemisfério Norte, a imigração. Especialmente oportuno na ressaca causada pela reeleição de Donald Trump, viabilizada, em parte, pela aversão do eleitorado republicano ao estrangeiro.
“Essa eleição é complexa, porque muitos gays apoiaram o Trump. Houve uma assimilação por parte do movimento, e muitos homossexuais passaram a achar que, para serem aceitos, precisariam adotar ideias conservadoras. Assim, o movimento gay se aproximou do centro, ou da centro-direita, enquanto os trans se tornaram os alvos”, diz ele, por telefone.
“O Intruso” é um dos destaques do 32º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, que reúne filmes, shows, livros, bate-papos e oficinas com temática LGBTQIA+ a partir desta quarta-feira (13), em São Paulo. A programação, gratuita, atinge seu clímax no dia 24 de novembro, com sua cerimônia de premiação.
Além de “O Intruso”, são destaques “Tudo Vai Ficar Bem”, de Ray Yeung, vencedor do Teddy em Berlim, “Maré Alta”, longa americano com Marco Pigossi que esteve no SXSW, e “Baby”, prêmio de melhor ator revelação na Semana da Crítica em Cannes. A abertura ficou com “Avenida Beira-Mar”, que levou o prêmio Félix de filme nacional no Festival do Rio.
Mas é LaBruce quem brilha na seleção, por seu pioneirismo no cinema queer e, também, porque o canadense estará em São Paulo nesta semana. Não apenas para exibir “O Intruso”, mas também para receber uma homenagem do evento, parceiro de longa data que lhe entrega o prêmio honorário Ícone Mix, já nesta quarta.
No dia seguinte, o multiartista inaugura no MIS, o Museu da Imagem e do Som, a exposição fotográfica “Bruce LaBruce Sem Censura”, com registros de bastidores de seus filmes, como “Hustler White”, um tragicômico retrato da prostituição masculina na Los Angeles dos anos 1990, e “The Raspberry Reich”, sobre um grupo terrorista de esquerda que quer fazer a revolução pelo sexo.
Ambos são filmes torridamente sexuais, de um período em que o cineasta estava disposto a chocar a qualquer custo. São várias as cenas de sexo explícito, intensificado por taras como asfixia e BDSM, em contraste com um LaBruce que havia ficado mais comportado nos mais recentes “Gerontofilia” e “Saint Narcisse” -ao menos para seus padrões.
“O Intruso” é um filme que subverte a hipersexualiação do homem negro e, mais importante, subverte uma retórica racista que LaBruce descreve como uma paranoia sexual, que cola ao estrangeiro a figura de um homem viril que “vai chegar e foder todo mundo” -Trump frequentemente chama os mexicanos que cruzam a fronteira de estupradores.
De fato é o que o protagonista de “O Intruso” faz. No filme, o acompanhamos pedindo abrigo num lar da burguesia britânica para, na sequência, seduzir pai, mãe, filho, filha e empregado. Ele transa com todos, algumas vezes com mais de um ao mesmo tempo, chocando o espectador com cenas de penetração e sexo oral explícitas, e também com incesto.
Antes disso, porém, uma voz grave e modorrenta entoa um discurso político sobre os perigos de abrir as fronteiras para imigrantes e refugiados. Os trechos, extremistas, foram tirados de discursos reais, e são ilustrados pela curiosa viagem de uma mala pelo Canal da Mancha, de onde sai, nu, o protagonista vivido pelo performer Bishop Black.
Seus atos, na sequência, são uma resposta àquela retórica xenofóbica, como se ele gritasse, sempre que tirasse a roupa, “vocês vão ter que me engolir”. E eles o fazem, ora metafórica ora literalmente. “Esse estranho chega e liberta essa família de suas repressões, os transforma em algo diferente. É um personagem que surge tanto como um libertador, quanto um destruidor”, diz LaBruce.
“Países coloniais acham que são mais civilizados que outros, mas foram eles, com o cristianismo, que levaram a homofobia para a África, por exemplo”, continua. Mais uma vez, o cineasta permeia seu trabalho de iconografia religiosa, jogando com a ideia de moral cristã e pondo um personagem de quatro diante de uma das fotografias mais controversas de sua carreira -a de uma mulher trans nua, com adereços como os de Nossa Senhora.
“O Intruso” é fruto do desejo antigo de LaBruce de refilmar “Teorema”, longa de outro cineasta controverso, Pier Paolo Pasolini, lançado em 1968. A premissa é semelhante -um desconhecido que chega numa casa e seduz toda uma família-, mas muito mais sexual na nova versão, que ainda brinca com gêneros como o horror e a ficção científica.
“São as mesmas ideias, mas levadas ao extremo absurdo”, afirma o canadense, que usou a ascensão de discursos de extrema direita como combustível. “O lado bom do que aconteceu nos Estados Unidos é que isso vai motivar não só os gays, mas a esquerda em geral a repensar a sua luta. E, enquanto artista, o fascismo me estimula a ser mais criativo e disruptivo.”
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress