SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em seis casos que envolvem ou envolveram posse de terras brasileiras por empresas de capital estrangeiro, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) manifestou oficialmente o interesse em participar de apenas um.
Em ação popular iniciada por Rodrigo Monteferrante Ricupero, professor do departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), a autarquia federal teve de se pronunciar sobre cinco negociações que se referem a terras adquiridas por companhias nacionais, mas de donos estrangeiros.
Ricupero contesta operações em que os compradores são, entre outras companhias, BP Bunge Bioenergia, Bracell, BrasilAgro, Raízen e SLC Agrícola. Essas empresas de capital internacional ou suas afiliadas fizeram negociações em que adquiriram imóveis rurais.
O professor e sua advogada, Noirma Murad, questionam o que consideram omissão do Incra para fiscalizar e pede que sejam decretadas as nulidades das transações já finalizadas.
Em suas respostas, formuladas pela AGU (Advocacia-Geral da União), o Incra pede a mesma coisa: a extinção da ação, diz não ter interesse em participar do processo por não “possuir legitimidade e interesse jurídico para ( ) propor medidas judiciais visando a nulidade do negócio jurídico em questão” e argumenta não ter “autorizações para legitimar a propriedade ou arrendamento de terras rurais brasileiras.”
Mas a iniciativa de Ricupero foi iniciada baseada em parecer do Incra em outra ação popular que trata do mesmo tema. A autarquia federal manifestou em demanda da Fetagri-MS (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores Familiares do Estado do Mato Grosso do Sul) que contesta a compra da Eldorado Celulose pela Paper Excellence, empresa brasileira de capital indonésio.
Neste caso, o Incra pediu, em julho do ano passado, para acompanhar o processo porque os fatos “indicam a ausência de pedido prévio de autorização [da negociação de terras] ao Incra e/ou Congresso Nacional, interesse cuja tutela seja de sua finalidade institucional.” Também alegou que estava em jogo, na disputa pela Eldorado, uma questão de soberania nacional.
Os argumentos foram usados para justificar sua ação popular.
Foi uma guinada de posicionamento do órgão, que menos de uma semana antes havia se posicionado neste caso nos mesmos termos dos questionados por Ricupero: indicou ilegitimidade e desinteresse em participar da ação.
“Estranhamos a manifestação do Incra e também da AGU, uma vez que o fundamento jurídico utilizado como suporte, dentre outras normas mencionadas nas iniciais, foi justamente o parecer do próprio órgão exarado em outra ação”, disse Noirma Murad, advogada do professor na ação.
Em nota, o Incra afirma que as “situações jurídicas” discutidas nas ações populares apresentam peculiaridades. Queixa-se que Ricupero aponta “de forma indistinta a ocorrência de supostas irregularidades de operações societárias já ocorridas”. Também diz que o professor não identificou concretamente as aquisições imobiliárias suspeitas ou ilegítimas.
Para o Incra, a diferença na ação civil pública sobre a Eldorado é que se trata de uma discussão ainda em andamento sobre uma companhia em que pode haver equiparação entre uma empresa brasileira e estrangeira. Também ressalta que a autarquia, neste caso, foi incluída como ré.
“De fato, a empresa Eldorado é proprietária de imóveis rurais que totalizam 14 mil hectares, sendo incontroverso que, neste caso, a aquisição de imóveis depende de autorização do Congresso Nacional (…)”, lembra o órgão.
Questionado sobre a falta de autorização do Congresso para que empresas de capital estrangeiro tivessem comprado terras em negociações anteriores, casos citados na ação de Ricupero, o Incra responde que “seria necessário analisar as situações de forma mais específica, o que não foi feito pelo autor.”
Em uma de suas manifestações, o Incra cita “notória carência de pessoal”. Lembra ser impossível acompanhar todas as aquisições por transferência de quotas, ações e que o órgão depende de denúncias.
Ao ressaltar a questão da soberania nacional, Noirma afirma que esse tem de ser o interesse da União e dos “órgãos que, legalmente, têm a obrigação de fiscalização e defender os interesses fundiários por força da Constituição.”
A jurisprudência para esta questão pode ser criada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que julga a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) iniciada em 2015 pela SRB (Sociedade Rural Brasileira). Ela pede que o Supremo esclareça se a Constituição mudou ou não o entendimento da lei 5.709/1971, que disciplina a aquisição de imóveis por estrangeiros.
A lei promulgada há 53 anos determina que a negociação só pode ser concretizada com autorização do Incra ou do Congresso Nacional. A discussão é se a Carta Magna de 1988 alterou este entendimento ao equiparar empresas brasileiras com companhias brasileiras de capital estrangeiro, o que dispensaria a consulta ao Legislativo.
“O que se nota é que, de acordo com o interesse afetado, esse investimento é alvo de questionamento. Como não há a definição de um marco legal do Supremo para o investimento estrangeiro, há uma insegurança tão grande que o investidor pode ser submetido a interesses particulares”, afirma o advogado Francisco Godoy, especialista em direito agrário.
A venda da Eldorado pela J&F foi fechada em 2017 por R$ 15 bilhões. Até hoje o controle acionário não foi transferido em um caso em que as duas partes trocam processos, condenações por litigância de má-fé, acusações de hackeamento, arbitragens e expedientes judiciais protelatórios. A questão da terra é uma das mais sensíveis e o STF marcou uma audiência entre as partes para tratar do assunto na próxima segunda-feira (18), em Brasília.
ALEX SABINO / Folhapress