(FOLHAPRESS) – A letra do samba “Só Dói Quando Eu Rio”, de Moacyr Luz e Aldir Blanc, aponta o descrédito: “Há quem não se importe/ Mas a zona norte…”. Definitivamente não é o caso de Alberto Mussa, que se importa tanto que batizou seu mais recente livro com o título de “A Extraordinária Zona Norte”.
Como nos seus romances anteriores sobretudo no ciclo de cinco volumes denominado “Compêndio Mítico do Rio de Janeiro” , a trama é policial e mistura a cultura legada por índios e africanos numa ficção hard, mas carnavalizada.
Uma nota introdutória esclarece que a obra foi concebida como “narrativa elusivamente autobiográfica, passada nos lugares que compõem meu mapa-múndi afetivo”. Um dos sobrenomes do autor é Baeta, o mesmo de alguns personagens.
O que detona a ação é uma chacina ocorrida num galpão onde se reuniam os componentes da escola de samba Flor da Mina, causando perplexidade na gente do morro do Andaraí, numa época, anos 1960, em que esse tipo de brutalidade ainda não era comum. A partir daí, se cruzam a história do bairro com o Brasil da ditadura militar, o surgimento dos grupos de extermínio e o poderio dos banqueiros do bicho.
A tese do romancista é que “uma cidade se define pela história de seus crimes”. Se tal cidade é o Rio, melhor ainda, porque o material é farto. Mussa volta sempre ao lugar do crime.
Embora haja um detetive particular, na tradição americana, não se trata de um romance policial à vera. Domício Baeta é um sujeito atrapalhado e avacalhado, no melhor molde carioca, a ponto de perder o rastro de uma mulher investigada por suposto adultério distraindo-se com a leitura de “O Asfalto Selvagem”, de Nelson Rodrigues. O ambiente rodrigueano e os adultérios fatais eis duas obsessões de Mussa.
Como se faz na ala de compositores, o autor estuda o tema em detalhes. Vai às fontes de referência mais antigas, desenha mapas, confere o nome de favelas e vielas, localiza barrancos e encruzilhadas, entrega o endereço de lupanares e centros espíritas, traça o perfil dos inúmeros personagens com seus orixás de cabeça e sua vida sexual anotada em triunfos e fracassos.
O resultado é um caos que surge na mais perfeita ordem, matematicamente exposto, com idas e vindas no tempo e relatos paralelos que se interpolam no relato principal. Até o desfecho inesperado, nas últimas páginas, de acordo com a escola britânica dos mistérios de detetive.
Mas cuidado: o escritor propõe um jogo de embaralhar verdades e mentiras, ficção e realidade, despistes e anacronismos. O leitor mais atento ou escravo do rigor histórico pode ficar em dúvida quanto aos fatos, mas no fundo o que o autor quer é isso mesmo: contestar as versões oficiais.
O narrador se refere a um “jogo de flores” que teria inspirado a criação do jogo do bicho no fim do século 19 cuja banca funcionava na rua do Ouvidor, “em frente à livraria do Ferrari”. Deve ser um antepassado do livreiro Rodrigo Ferrari, que abriu a Folha Seca no fim do século 20.
A linguagem é solta, algumas sentenças são verdadeiros cacos, lançados aqui e ali para acentuar a ironia ou a falta de isenção do narrador. Exemplo: “Embora fosse tricolor, gostava de futebol”.
Na galeria de figuras se destacam o mestre de bateria com ouvido absoluto Jorge Cego (uma homenagem a Borges, que exerce forte influência no autor) e muitas mulheres, todas na linha das comadres de Manuel Antônio de Almeida ou da Capitu machadiana. Uma delas, Donda, vai virar a cabeça do detetive.
Alberto Mussa que na intimidade das rodas de samba é chamado de Velho Baeta mantém viva a voz do romance carioca.
A EXTRAORDINÁRIA ZONA NORTE
– Avaliação Bom
– Preço R$ 79,90 (232 págs.); R$ 64,90 (ebook)
– Autoria Alberto Mussa
– Editora Todavia
ALVARO COSTA E SILVA / Folhapress