SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Itamar Vieira Junior ainda não havia publicado “Torto Arado”, o livro que o consagrou, quando assistiu “Ópera do Malandro”, peça estrelada por Larissa Luz em 2014. Na época, a performance na montagem de João Falcão impressionou o escritor, que hoje celebra o protagonismo da atriz e cantora no musical inspirado em seu best-seller.
Após duas temporadas com ingressos esgotados em Salvador (BA), “Torto Arado – O Musical” estreia nesta quarta-feira (20) no Teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis, em São Paulo, em uma montagem que arrebatou o escritor.
Ele não imaginava o romance, com uma história que se passa nas profundezas do sertão baiano, transformado em espetáculo de canto e dança. “Foi uma agradável surpresa”, diz Vieira Júnior. “É uma linguagem que consegue mobilizar os sentidos e o público de uma maneira única”.
Com direção de Elísio Lopes Júnior, a encenação conta com 22 artistas -16 atores e seis músicos- e mergulha na cultura popular brasileira para contar a saga das irmãs Bibiana –papel de Larissa Luz– e Belonísia –interpretada por Bárbara Sut.
Marcadas por um acidente na infância, elas vivem em condições de trabalho análogo à escravidão em uma fazenda no sertão da Chapada Diamantina, na Bahia, onde lutam pela terra e convivem com os saberes ancestrais da avó Donana –papel de Lilian Valeska.
Luz teve o primeiro contato com a obra por meio da mãe, professora de literatura e fã do livro. A atriz define a transposição do texto para o musical como um “bordar minucioso”.
No caso de Bárbara houve identificação. Sem imaginar que um dia interpretaria Belonísia, ela sentiu uma forte empatia pela personagem ao ler o livro e chegou a pausar a leitura no momento em que Bibiana se separa da irmã.
“É uma personagem que me mobilizou muito”, afirma a atriz, também fã do escritor. Nos ensaios, ela precisou, aos poucos, se afastar da relação como leitora para incorporar a intérprete de uma mulher que ficou muda após perder um pedaço da língua.
Já Lilian lida com o desafio de envelhecer no palco, diante do público. Na preparação, passou por um processo complexo de internalizar as vivências das mulheres do sertão baiano e, ao mesmo tempo, construir a sua própria Donana.
“São muitos valores e questionamentos enquanto mulher preta. Cada vez que entro em cena revivo isso tudo, mas de uma maneira saudável”, relata. “É um presente, um desafio”.
É a segunda adaptação de “Torto Arado” para o teatro. A primeira, com o nome “Depois do Silêncio”, da diretora Christiane Jatahy, conecta a obra de Vieira Júnior ao documentário “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, sobre a trajetória de João Pedro Teixeira, um líder rural assassinado em 1962.
Na encenação atual, a ligação entre a história de vida e morte contada pelo escritor baiano e a narrativa musical é ressaltada pelo diretor Elisio Lopes Junior por meio das religiões de matrizes africana e indígena.
“Elas cultuam cantando e dançando. Esse elemento é fundamental”, afirma. No romance e no musical, isso aparece por meio do universo dos encantados, seres espirituais que representam a ancestralidade.
Os movimentos do espetáculo são baseados no Jarê, religião de matriz africana presente na Chapada Diamantina e destacada no livro. “O que tento fazer com a estética e o vocabulário é tornar contemporânea essa visão e apresentar o que há de mais bonito e mais plástico dentro dos rituais”, explica o coreógrafo Zebrinha.
A música e a dança permitem a ligação entre o lúdico e o concreto, a beleza e a dor, a poesia e a aspereza do sertão e das vidas que ele abriga. Além do Jarê, os sons e os movimentos da natureza inspiram a encenação, em uma estética que inclui o barulho do rio, o som dos grilos e o tempo do anoitecer, por exemplo.
Lopes Junior assina também a dramaturgia do musical ao lado de Aldri Anunciação e Fábio Espírito Santo. O espetáculo tem composições inéditas e ligadas ao cancioneiro nordestino interiorano, com direção musical de Jarbas Bittencourt.
Vieira Júnior não participou diretamente da adaptação, mas considera que os dramaturgos foram fiéis a pontos essenciais do livro. Curiosamente, ele relata que assistiu ao musical com o interesse de um espectador comum, impactado pela linguagem e pela utilização dos recursos teatrais como cenografia, figurino e iluminação.
“Fiquei muito envolvido com a história, com a força dos atores, dos personagens. Fiquei impressionado com o trabalho que fizeram com o livro”.
O escritor revela ter fascínio pelas artes cênicas. “O espetáculo mexe com todos os sentidos. Essa é a magia que o teatro nos dá”, diz. A renovação diária, com encenações e público que mudam a cada apresentação, também encantam o autor. Ele não descarta a possibilidade de, no futuro, escrever uma peça.
“Torto Arado – O Musical” ficou dois meses em cartaz em Salvador e foi visto por 14 mil pessoas. A maioria do elenco é natural da Bahia, em uma decisão da produção de ressaltar a força do teatro local.
“Ter estreado perto do lugar onde essa história foi concebida, e perto das pessoas que entendem esse universo, nos deu uma sensação de pertencimento”, afirma o diretor. “Percebemos que ‘Torto Arado’ tem humor, tem dor, tem poesia”.
Vieira Júnior escreveu o livro quando ainda trabalhava oito horas por dia no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), como servidor público. Era uma dedicação de quatro horas seguidas após o expediente, em uma espécie de terceiro turno.
A obra, lançada em 2019, transformou a vida do escritor, hoje uma espécie de popstar em feiras literárias e eventos semelhantes. “Torto Arado” venceu os prêmios Jabuti e Oceanos em 2020 e foi traduzido em 30 países. Este ano, conquistou o prêmio francês Montluc Résistance et Liberté.Também foi indicado ao prêmio Booker Internacional, que seleciona anualmente os melhores livros estrangeiros traduzidos ao inglês e editados no Reino Unido ou Irlanda.
As adaptações para o teatro não são as únicas. “Torto Arado” já inspirou obras nas artes plásticas, espetáculo de dança e até tatuagens -sim, existem fãs que perpetuam imagens do livro na própria pele, compartilhadas em comunidades nas redes sociais.
Tantas demandas afastam o escritor do ofício, fato que ele pretende contornar nos próximos meses. Licenciado do Incra, Vieira Júnior vai dar também uma pausa nas viagens para se dedicar à próxima obra, baseada em conflitos fundiários que acontecem em Salvador desde a ocupação urbana da cidade, acentuada pelo êxodo rural. Ainda sem nome, o livro encerra a trilogia de obras sobre a terra que inclui “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”.
CRISTINA CAMARGO / Folhapress