SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando, no último dia 19 de outubro, o premiado jornalista José Rubén Zamora voltou à sua casa após mais de 800 dias detido em um presídio da Cidade da Guatemala, o sentimento foi agridoce.
“Este lugar é mais do que uma casa, é uma igreja”, afirma ele da residência que agora cumpre o papel de prisão domiciliar, no sul da capital do país centro-americano. A casa foi construída por Clemente Marroquín, seu avô, também jornalista e vice-presidente da Guatemala de 1966 a 1970. “Aqui aconteceram os melhores momentos da minha família por quatro gerações.”
A incerteza em relação ao processo judicial que enfrenta há quase três anos, no entanto, encobriu o alívio. “Desde que saí da prisão, sempre estive consciente de que o retorno seria muito provável”, afirma.
O mais recente desdobramento do seu caso, que organizações como a Anistia Internacional consideram politicamente motivado, corroboram seu ponto de vista. No último dia 15, antes que a parcial libertação do jornalista completasse um mês, uma corte da Guatemala pediu que ele voltasse a cumprir prisão preventiva o que ainda não se concretizou devido a um recurso apresentado por sua defesa, sob análise.
Fundador de três jornais responsáveis por desbaratar inúmeros esquemas de corrupção das autoridades locais Siglo 21, em 1990, elPeriódico, em 1996, e Nuestro Diario, em 1998, Zamora é acusado de lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça em um processo que começou na gestão do ex-presidente Alejandro Giammattei (2020-2024).
Para organizações de direitos humanos, acadêmicos e órgãos de imprensa, o caso de Zamora é parte do expurgo de juízes, advogados e jornalistas pelo qual a Guatemala passou após 2019, com o fim da Cicig (Comissão Internacional Contra a Impunidade da Guatemala), órgão criado em parceria com a ONU para apurar casos de corrupção.
O jornalista conta que, dos 16 advogados que contratou ao longo do processo, quatro foram presos por defendê-lo, e dois tiveram que se exilar. A certa altura, chegou a recorrer a um defensor público. “Já não tinha dinheiro, e também ninguém mais queria me defender”, diz.
O calvário para conseguir pagar a defesa envolveu a venda de relógios, carros e até de um apartamento. Em maio de 2023, enquanto ainda estava preso, o fechamento do jornal elPeriódico, após meses de perseguição, impôs, além da óbvia perda para a imprensa guatemalteca, mais um desafio econômico para a família.
“Estou muito limitado em relação a recursos”, diz ele, que agora tem novos gastos com saúde pela condição debilitada que a prisão lhe deixou. “Recentemente encontrei uma ação que tinha em um clube alemão. Vou vendê-la para fazer exames.”
Zamora ficou em uma solitária durante os mais de dois anos detido em Mariscal Zavala, um presídio na região leste da Cidade da Guatemala. Ele descreve a cela como pequena, mal iluminada (“tinha só uma lâmpada roxa escura”) e empoeirada.
“Entendo que ninguém pode estar nessas celas por mais de 18 dias. São isoladas, incomunicáveis e destinadas a pessoas que tiveram problemas dentro da prisão”, afirma o jornalista, que diz ter perdido cerca de 20 kg nos primeiros 15 dias de detenção.
Durante os quase dez minutos da entrevista em que descreveu o seu cotidiano no presídio, Zamora citou casos de privação de sono, cortes de água e luz e nudez forçada. Em agosto, especialistas da ONU afirmaram que a situação em que ele se encontrava equivalia a tortura.
Uma semana após ser detido, por exemplo, quando voltou de sua primeira audiência, Zamora disse ter encontrado centenas de insetos e animais na cela.
“Eles haviam entrado com uma sacola com talvez 3.000 animais estranhos, insetos de todos os tipos, sanguessugas e percevejos que não estavam ali antes”, afirma. O inseticida que conseguiu posteriormente, conta o jornalista, não era suficiente. “Era como dar um martini ou um negroni aos insetos. Eu tive que morar com eles. Sentia pavor quando, à noite, vinham comer embaixo da minha cama.”
O problema foi solucionado com um inseticida em pó, mais forte. O produto, porém, danificou seus pulmões e provocou deterioração no seu sistema nervoso, segundo seu relato. “Tenho alguns nervos entre o joelho e o tornozelo que estão mortos, minhas pernas estão muito ruins”, afirma o jornalista.
A situação teve uma leve melhora após a posse de Bernardo Arévalo, que chegou ao poder após uma improvável vitória nas eleições presidenciais de 2023. Sem pontuar nas pesquisas de intenção de voto, sua chapa foi poupada de uma suspensão destino de quatro aspirantes à Presidência naquele ano, incluindo o então líder, de acordo com as sondagens.
Com a mudança de gestão, Zamora passou a ter a possibilidade de ficar oito horas por dia fora da cela, não mais apenas uma, como antes, e conseguiu fazer melhorias no espaço, como instalar uma lâmpada mais clara e manter um aquecedor e uma pequena geladeira para guardar comida.
Após a revogação da prisão domiciliar do jornalista, Arévalo foi às redes afirmar que a força pública não executaria “ordens ilegais provenientes de um Ministério Público criminalizador e arbitrário”.
A declaração abriu uma nova queda de braço com a procuradora Consuelo Porras, que figura na Lista de Atores Corruptos e Antidemocráticos dos EUA, mais conhecida como Lista Engel. A procuradora é apontada como uma das responsáveis pela caça às bruxas que se seguiu ao fim da Cicig, levando diversos jornalistas e funcionários da Justiça guatemalteca a se exilarem.
Em um comunicado, ela afirmou que o posicionamento de Arévalo é uma tentativa de atacar “a autonomia e a independência” do Ministério Público.
Para Zamora, as ofensivas da Procuradoria contra o governo constituem “um golpe de Estado judicial em câmera lenta” na Guatemala. “Estão aniquilando progressivamente a presunção de inocência do presidente”, diz ele, citando as acusações de fraude eleitoral contra o partido de Arévalo e prisões no entorno do líder.
“Ele não tem capacidade de manobra. Está com as mãos atadas, com minoria no Congresso e um sistema judicial na mão de máfias”, afirma o jornalista. “Estão transformando em crimes coisas que fazem parte da música da democracia.”
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José Rubén Zamora, 68
Engenheiro e jornalista, José Rubén Zamora fundou três jornais na Guatemala e ganhou diversos prêmios ao longo de sua carreira na imprensa, dentre eles o Maria Moors Cabot, da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia (EUA). Em 2000, foi nomeado pelo International Press Institute um dos 50 heróis da liberdade de imprensa do século 20 e, neste ano, enquanto ainda estava preso, recebeu o Reconhecimento da Excelência do prêmio Gabo, o mais importante da América Latina.
DANIELA ARCANJO / Folhapress