Carrefour coleciona crises que comprometem sua imagem, dizem especialistas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Faz exatos quatro anos que o Carrefour passou pela maior crise de imagem da sua história no Brasil, um mercado onde se instalou há cinco décadas. Em 19 de novembro de 2020, às vésperas do Dia da Consciência Negra, Beto Freitas, um cliente negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, após desentendimento com uma funcionária do caixa.

O episódio foi comparado ao caso do americano George Floyd, também negro, estrangulado seis meses antes nos Estados Unidos por um policial branco. A morte de Floyd deu origem a manifestações em todo o mundo com a campanha “Vidas negras importam”, que voltou à tona no Brasil a partir do que aconteceu em Porto Alegre.

À época, o presidente global do Carrefour, Alexandre Bompard, foi ao antigo Twitter afirmar que “meus valores e os valores do Carrefour não compactuam com racismo e violência”, ressaltando ainda que as imagens da agressão eram “insuportáveis”.

O mesmo Bompard, no último dia 20, também feriado da Consciência Negra no Brasil, voltou às redes sociais para declarar que a empresa não iria mais comprar carne de frigoríficos do Mercosul, bloco comercial liderado pelo Brasil, em apoio a agricultores franceses, e porque os produtos não atenderiam as exigências e normas da França.

Como pano de fundo das declarações está o impasse envolvendo o acordo entre União Europeia e Mercosul –do qual a França discorda. Com isso, as declarações de Bompard saíram do âmbito corporativo e abriram uma crise diplomática entre os dois países.

Na opinião de consultores em gestão e especialistas em gerenciamento de crises ouvidos pela Folha de S.Paulo, as duas grandes crises vividas pela empresa em um espaço curto de tempo ganharam uma dimensão maior do que a esperada.

Para eles, falta tato à rede varejista para lidar com questões locais, o que compromete a sua imagem junto aos públicos com quem ela se relaciona –os chamados “stakeholders”, grupo formado por consumidores, funcionários, comunidade, fornecedores, governo e investidores.

Para alguns especialistas, essa falta de tato pode estar relacionada à maioria de integrantes franceses no comando da filial brasileira.

Procurado pela reportagem, o Carrefour não quis comentar.

O próprio Alexandre Bompard é presidente do conselho (chairman) do Carrefour Brasil, que tem capital aberto no país. Entre as 13 cadeiras do conselho brasileiro, sete são ocupadas por franceses. Na diretoria, dos 10 integrantes, quatro são estrangeiros, entre eles o CEO do Carrefour Brasil, Stéphane Maquaire.

Essa não é a realidade de outras varejistas estrangeiras com capital aberto no Brasil: na anglo-holandesa C&A, por exemplo, apenas brasileiros estão no conselho e na diretoria. E mesmo no rival francês do Carrefour, o Casino, controlador do Grupo Pão de Açúcar, a maioria dos assentos do conselho é composta por brasileiros (seis das nove cadeiras), e existe apenas um francês entre os quatro membros da diretoria. No Pão de Açúcar, o CEO e o chairman são brasileiros.

“Se uma empresa brasileira quer ser multinacional, ela não pode ter no seu quadro só conselheiros brasileiros. O mesmo acontece com a empresa francesa, japonesa ou americana. São necessários talentos que façam a tradução cultural do negócio, algo que não acontece naturalmente”, diz a psicóloga Betania Tanure, especialista em comportamento organizacional, sócia da consultoria BTA Associados.

“Existe uma expressão para isso: ‘O peixe não vê a água’. Quando você está muito imerso em uma cultura, você não percebe que aquilo é uma característica sua, não de todo mundo”, afirma.

Lígia Costa, coordenadora do Centro de Estudos em Ética, Transparência, Integridade e Compliance da FGV (Fundação Getulio Vargas), concorda. “Quando a empresa francesa sai da França, ela entende que cargos chave na organização precisam ser assumidos por franceses –e essas pessoas podem demorar um pouco mais para entenderem a cultura e os costumes locais, o que é ruim para os negócios, especialmente em se tratando de varejo, que lida direto com o público.”

Na opinião da especialista, com mestrado e doutorado em direito comercial internacional pela Universidade de Paris, por estar no Brasil desde 1979, o Carrefour já deveria ter formado executivos para ocuparem o alto escalão da companhia no país. Ela lembra que o rival Casino manteve quadros brasileiros no Pão de Açúcar por influência do empresário Abilio Diniz (morto em fevereiro deste ano), filho do fundador e sócio do grupo francês.

“Ao Carrefour, faltou tato, conhecimento da cultura e do negócio local”, diz Lígia, que considera que as declarações do CEO afetaram a percepção da marca francesa no Brasil. “O presidente de uma multinacional precisa saber quais são as dinâmicas culturais e econômicas dos mercados onde atua. O Brasil é um grande produtor de proteína animal, somos os maiores exportadores do mundo. É claro que declarações dele não ficariam restritas ao mercado francês e trariam consequências para a filial.”

Como retaliação, grandes frigoríficos, como a JBS, decidiram interromper a venda de carne à empresa no país –mesmo depois de o Carrefour afirmar que o veto às carnes do Mercosul se restringiam às lojas da matriz. Como apontou a Folha de S.Paulo, começou a faltar carne nos balcões dos supermercados da rede no Brasil. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, exigiu uma retratação da empresa, que chegou seis dias depois. Só então os frigoríficos retomaram o fornecimento.

“A imagem do Carrefour para os brasileiros sai muito arranhada”, diz Jairo Procianoy, professor da Fundação Dom Cabral, dedicada à educação executiva. “O episódio é especialmente ruim, considerando que o país é o segundo principal mercado do Carrefour no mundo”. Para o especialista, que trabalha com formação de conselheiros e governança corporativa, a empresa já ficou marcada pelo caso do cliente negro morto por seguranças. “Uma crise com esta proporção só piora a imagem da companhia junto aos consumidores.”

Para Marcelo Rodrigues, professor de gestão de crise da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), as declarações de Alexandre Bompard foram dadas considerando apenas o público francês –o que não é razoável para uma multinacional que tem no Brasil a sua maior filial.

“Faltou uma avaliação de risco, especialmente por se tratar de uma empresa com ações em bolsa”, diz. “Quando um CEO global fala, ele envolve relações diplomáticas nos países onde a empresa atua, cada declaração precisa ser bem calculada”.

Rodrigues elogia o fato de a rede vir a público se retratar. “Em qualquer crise, é preciso começar, minimamente, com um pedido de desculpas”, afirma o professor da ESPM, embora considere que o teor da carta enviada ao ministro não foi consistente. “Ele disse que foi mal interpretado, mas a crítica aos produtos do Mercosul foi explícita.”

Para Betania Tanure –que já atuou como professora convidada da escola de negócios francesa Insead, da britânica London School of Economics e do programa de MBA executivo Trium, vinculado à Universidade de Nova York–, cada país tem, atrelado à sua cultura, o seu jeito de governar e fazer negócios.

“Os franceses têm uma cultura tão autoritária quanto a brasileira. Mas a diferença é que o brasileiro é muito mais flexível e cuidadoso nas relações, enquanto o francês em geral é mais individualista”, diz. “Se o brasileiro encontra uma barreira, um conflito, ele tenta contornar. Já o francês costuma bater de frente.”

Para ela, o desafio das organizações de uma maneira geral, especialmente as multinacionais, está em compreender que pequenos detalhes podem gerar grandes crises reputacionais. “O grau de sensibilidade das pessoas, para o bem e para o mal, está absolutamente exacerbado. O que poderia passar despercebido em outras épocas, hoje ganha uma repercussão rápida e às vezes muito maior do que merece.”

DANIELE MADUREIRA / Folhapress

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