Mentiroso

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– Tava eu, Quéri Gran e Né Quim Cou!
Era assim que Nezinho sempre começava suas saborosas mentiras. Primeiro, dava o contexto em que a cena havia acontecido e para isso era imperativo que todos soubessem das testemunhas que costumeiramente o acompanhavam nos seus inacreditáveis causos.

Corriam os anos 1950 e em Quaraí, na fronteira-oeste do Rio Grande do Sul, o trio era conhecidíssimo. Nezinho, Cary Grant e Nat King Cole andavam sempre juntos. Nezinho se autoproclamava o líder do grupo e chamava o galã do cinema hollywodiano de uma forma intimista que resultava em “Quéri Gran”. Já o cantor Nat King Cole, no auge da fama com sua voz de veludo, não se importava de ter o nome um pouco alterado para “Né Quim Cou”. Afinal, como dizia Nezinho, os três eram grandes amigos.

E assim as mentiras do Nezinho alegravam as rodas de conversa nas esquinas, bares, clubes, churrascos e ambientes mais picantes da cidade. Todos tinham um carinho especial por aquele tipo porque sabiam que dali só poderia sair uma boa história que, quando não provocava o riso, invariavelmente inspirava sentimentos de empatia ou até, se fosse o caso, compaixão. Ele encarnava o lado cômico, satírico e mentiroso de cada um dos moradores da pequena querência fronteiriça. Dizia o que muitos teriam prazer em externar, mas não o faziam por vergonha, imposições sociais, ou mesmo receio de protagonizar uma situação ridícula. Ao Nezinho tudo era perdoado e com carta branca ele soltava a imaginação sem rédeas, fazendo assim, um bem danado à saúde mental daquela comunidade. Um dia, Nezinho fez uma cobra chorar.

Choraria o próprio Nezinho se estivesse vivo para ver o que fizeram com a mentira nos dias de hoje. O mentiroso boa- praça, folclórico, simpático, deu lugar a um tipo raivoso que faz da mentira uma espécie de cacetete pronto para arrebentar a cabeça de quem se atravesse na sua narrativa absurda. Ao contrário de Nezinho e seus admiradores, agora o mentiroso tem “seguidores” e estes salivam, babam e rangem os dentes a cada nova ideia delirante, desconexa e – claro – mentirosa. Uma atmosfera pesada de sadismo envolve a mentira contemporânea na sanha de humilhar, ofender, destratar.

Que diria Nezinho e sua turma se soubessem que hoje a mentira atende em inglês? Adaptando o nome como fazia com seus colegas Né Quim Cou e Quéri Gran, Nezinho certamente diria “féqui nius”. Mas não lhe cairia bem a expressão estrangeira. O mentiroso moderno pratica a fake news quando lhe interessa. Só que o mentiroso de hoje não tem graça. A sua mentira é aquela praticada pelo homem desde a caverna, a mentira que machuca, que é sórdida, que é sinônimo de traição. A mentira que antes as pessoas mantinham em segredo para atingir seus objetivos, agora é motivo de orgulho em praça pública. E quando não a propaga, o mentiroso pego em apuros se diz vítima dela, brada que é fake news.

Bem mais agradável era o mentiroso Nezinho. Estavam os três amigos no chatô do líder do grupo numa noite quente de verão. Né Quim Cou e Quéri Gran sairam para fumar na varanda. Nezinho ficou descansando no sofá. De repente, Né e Quim ouviram um grito curto de dor vindo de dentro da casa. Correram até a janela e viram Nezinho frente a frente com sua cobra de estimação, a Mimosa. Ela estava enrodilhada em cima de uma almofada no sofá e Nezinho gesticulava como se estivesse conversando, com o rosto muito perto da serpente.

Todos sabiam que Nezinho criava aquela urutu cruzeira há muito tempo como se fosse um animal doméstico. Capturou-a numa pescaria e a mantinha dentro de casa onde ela se encarregava de exterminar os ratos que infestavam o porão. Nezinho era assim. Gostava de impressionar com tudo o que fosse inusitado e fora da ordem. Mas agora ele estava ali num raro momento em que sua expressão não era a da costumeira zombaria. Tinha o cenho fechado, nervoso, como se estivesse realmente preocupado com algo muito sério. E não era prá menos. Mimosa havia picado seu amado quando este fizera um movimento mais brusco no sofá.

Né e Quim se aproximaram em silêncio para ouvir com mais clareza o que Nezinho estava a dizer. Em verdade era uma descompostura, mais que isso, era um sermão que a pobre cobra ouvia de cabeça baixa, sem conseguir olhar nos olhos de Nezinho:
– Então, eu te criei desde pequeninha. Te acolhi, te dei abrigo, uma caminha confortável, comida e carinho. Te acompanhei nos momentos mais difíceis. E agora tu me aprontas uma destas! Me pica à traição. Poderia esperar isso de qualquer um, menos de ti…
Né e Quim testemunharam com clareza o momento em que duas lágrimas correram dos olhos da Mimosa. Foi o dia em que a cobra chorou.