Politização e subversão de hierarquias favoreceram descontrole da PM, avaliam especialistas

O governador disse não estar "nem aí" para denúncias feitas por entidades de direitos humanos de abuso no uso da força letal por PMs durante operações na Baixada Santista. Esta semana, mudou o tom e disse reconhecer o peso de seus discursos nas condutas de policiais

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Foto: Divulgação/Governo de SP

O aumento da violência policial em São Paulo – explícito nos vídeos recentes que mostram agressões e outras ações ilegais de agentes – é uma crise anunciada desde o início do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do anúncio de Guilherme Derrite (PL) como seu secretário da Segurança Pública, de acordo com especialistas na área.

Pesquisadores e outros estudiosos do assunto ouvidos pela Folha de S.Paulo são unânimes na avaliação de que os discursos políticos de enfrentamento do crime a qualquer custo e de respaldo institucional a policiais envolvidos em operações que resultaram em mortes são vetores importantes da crise atual.

Em março, o próprio governador disse não estar “nem aí” para denúncias feitas por entidades de direitos humanos de abuso no uso da força letal por PMs durante operações de combate ao crime organizado na Baixada Santista. Esta semana, ele mudou o tom de suas declarações e disse reconhecer o peso de seus discursos nas condutas de policiais nas ruas.

“Se a gente erra no discurso, a gente dá o direcionamento errado e a gente traz consequências erradas”, afirmou Tarcísio na última sexta-feira (6) durante evento no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), na capital paulista.

Para o cientista político Leandro Piquet Carneiro, coordenador da Escola de Segurança Multidimensional da USP, “a politização gerou um problema grave” e uma “polícia sem controle pode ser violenta e, em breve, será também corrupta”.

“Cada vez que vem uma declaração de que tem que usar seu instrumento de trabalho, é como se houvesse uma prontidão negativa para responder a isso. A PM tem um ethos do combate e do enfrentamento que precisa ser mobilizado com extremo cuidado”, afirma.

“O comando tem de reforçar o controle, a regra e o procedimento. E manter a hierarquia, a disciplina e o engajamento dos praças no trabalho. Não é fácil, mas é o caminho para construir legitimidade. Do jeito que fizeram, o resultado é uma tragédia atrás da outra.”

Se os discursos das lideranças paulistas foram no sentido contrário do controle, da regra e do procedimento, a atuação do secretário Derrite à frente da pasta da Segurança Pública também subverteu hierarquias caras à cultura organizacional da PM, o que prejudicou os mecanismos de controle, dizem especialistas

“Nunca vimos em São Paulo um secretário de Segurança Pública com tanto poder e ingerência política na polícia”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. “Isso sem dúvida tem consequência importante na violência descontrolada e na legitimidade que o policial da ponta sente para bater numa senhora e para jogar alguém da ponte porque tem um secretário que legitima esse tipo de atuação.”

Segundo Carolina, a chegada de Derrite à secretaria – um capitão reformado da PM, que foi desligado da Rota (tropa de elite da PM) por excesso de mortes – veio acompanhada de uma série de ingerências políticas sobre a polícia militar, como a transferência de coronéis de perfil legalista e a tentativa de aposentá-los compulsoriamente.

“Como ele conhece a estrutura militar, ele a está manipulando para que a gestão das tropas seja muito mais centralizada”, afirma. “A PM tem a tradição de empoderar o comandante local, que é diretamente responsável pelos seus comandados. Mas Derrite fez uma mudança importante que centralizou nele essa responsabilização. Todo afastamento de policial passou a ter de ser autorizado pelo subcomandante, que é um homem de confiança dele. Agora, nem o comandante local nem o corregedor podem decidir sozinhos pelo afastamento de um policial.”

O secretario também mantém uma relação direta com as tropas, seja pelo seu uso de redes sociais, seja porque faz questão de estar presente em solenidades de companhias e batalhões.

“Vou fazer 62 anos na polícia, e nenhum secretário ousou fazer as anomalias da administração do Derrite, aceitas pelo comandante-geral”, afirma José Vicente da Silva, coronel reformado da PM e especialista em segurança. “Ele não respeitou as estruturas da PM e subverteu suas hierarquias. Assumiu a secretaria de Segurança Pública com a visão de tenente de Rota.”

Para ele, a escolha de alguém com carreira política para a pasta configura um erro. Derrite era deputado federal quando foi escolhido por Tarcísio por indicação do também deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Ele está licenciado do cargo na Câmara para poder comandar a pasta.

“Temos poucos casos, e todos desastrosos, de políticos na secretaria da Segurança Pública. Ele está de olho no voto ali na frente. Faz discurso para seus eleitores e para o seu Instagram. E o mau uso político desses cargos é uma tragédia.”

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública afirma que segue princípios técnicos e que todas as denúncias contra policiais são investigadas. Também diz que o número de mortes em operações policiais é menor nos dois primeiros anos de governo Tarcísio do que no mesmo período da gestão de João Doria (em 2019 e 2020).

“A pasta mantém suas corregedorias bem estruturadas e atuantes para registrar e apurar qualquer desvio de conduta, aplicando as devidas punições aos agentes. Desde o início do ano passado, mais de 280 policiais foram demitidos e expulsos, enquanto um total de 414 agentes foram presos, mostrando o compromisso da SSP em não compactuar com os profissionais que violam as regras das suas respectivas instituições”, diz a nota.

FERNANDA MENA / Folhapress

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