Cadáveres de detentos com sinais de tortura expõem horror da ditadura de Assad

DAMASCO, SÍRIA (FOLHAPRESS) – A carnificina exposta no hospital Al-Mujtahid, em Damasco, indica a magnitude do horror dos 24 anos da ditadura de Bashar al-Assad na Síria.

Na tarde ensolarada deste domingo (15), familiares de desaparecidos nas prisões de Assad enfileiravam-se diante de uma sala no necrotério do hospital. Tentavam identificar seus filhos, irmãos ou primos entre oito cadáveres de homens estirados no chão, com sinais aparentes de tortura, estado grave de desnutrição, buracos de bala, além de uma perna amputada do joelho para baixo e um saco com ossos apoiado na parede.

O verdureiro Bakri bin Muhammad Zaeirbani, de Aleppo, procurava seus três filhos, Muhammad, Ahmed e Ali, que foram presos em 2013 e mandados para a prisão de Sednaya, chamada pela Anistia Internacional de “abatedouro humano”. Segundo a ONG, milhares de sírios foram executados no local.

Assad fugiu para a Rússia na semana passada após seu governo entrar em colapso com o avanço da oposição encabeçada pelos milicianos do Hayat Tahrir al Sham (HTS) e o recuo dos russos e do Irã, que garantiam sobrevida ao regime desde o início da guerra civil, em 2011.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha estima que 150 mil pessoas tenham desaparecido durante a ditadura de Assad, a maioria após o início da guerra civil. Grande parte delas teria ido parar nas prisões do regime, onde as torturas eram disseminadas.

Os primeiros 40 corpos que chegaram ao hospital Al-Mujtahid foram encontrados pelos milicianos do HTS em Sednaya e no hospital militar de Harasta, para onde eram levados detentos da penitenciária. Eles estavam embrulhados em lençóis brancos ensanguentados, empilhados em uma sala refrigerada.

Outros hospitais também estão recebendo corpos achados em prisões, além de sobreviventes que foram libertados após a queda de Assad.

Segundo a Associação de Detentos e Desaparecidos da Prisão de Sednaya, os corpos dos detentos da penitenciária eram mandados para o hospital de Harasta e, de lá, enterrados em valas comuns, sem identificação.

O HTS, liderado pelo comandante Ahmad al-Sharaa, assumiu o poder na Síria por meio de um governo provisório que tem como primeiro-ministro interino Mohammed al-Bashir.

Por todo o país, espalham-se protestos de familiares de desaparecidos. O governo provisório está orientando as famílias a baixarem um aplicativo que permite a procura por número de identidade para verificar se o ente querido está em listas de mortos. Segundo o governo de transição, o regime de Assad registrava os “incidentes com mortes” em livros secretos no Ministério de Assuntos Civis.

Os três filhos do verdureiro Zaeirbani foram levados pelo famigerado setor de inteligência da Força Aérea de Assad quando tinham 31, 25 e 16 anos. Segundo o pai, todos trabalhavam com ele vendendo verduras como ambulantes e não tinham atividades políticas.

Quando foi até Sednaya buscar informações sobre os filhos, logo após a detenção, o verdureiro ouviu de um dos guardas que, da próxima vez que voltasse, também seria preso.

Com a queda do ditador, Zaeirbani juntou-se aos milhares de sírios que percorrem hospitais e prisões em busca de notícias sobre familiares.

Mahmud Jamal Tafi, de Aleppo, tampou o nariz com a gola da blusa, para aguentar o cheiro forte, e abria cada uma das gavetas do necrotério nas quais se viam corpos parcialmente cobertos por lençóis. Ainda tinha esperança de achar seus amigos Abd al Hamid Alfawaz e Mohammad Omar Shahin, presos pelo regime em 2015.

Dos 40 corpos do hospital, apenas 20 haviam sido identificados. Segundo Asaad Saqr, funcionário do necrotério, há diversos médicos tentando identificar os cadáveres com amostras de DNA e arcada dentária. “Temos esperança de identificar todos os corpos, mas muitos laboratórios de DNA não estão funcionando.”

Segundo um médico forense do hospital, muitos detentos tinham sangramentos internos, que poderiam indicar tortura.

Familiares também se aglomeravam diante do muro do hospital e uma parede externa forrada com fotos de cadáveres. Um deles era um operário de Damasco que não quis se identificar e afirmou estar procurando nove pessoas de sua família que sumiram –oito primos presos em 2012 e seu irmão, em 2014.

Um miliciano do HTS portando uma metralhadora e com outras duas apoiadas a seu lado tentava organizar o tumulto. Ele avisava as famílias que o Crescente Vermelho sírio está auxiliando na busca dos desaparecidos e fornecia números de contato.

O Observatório Sírio de Direitos Humanos, uma ONG, estima que 60 mil pessoas tenham sido torturadas e mortas nas prisões do governo Assad.

O HTS está na lista de entidades terroristas sob sanções de vários países. O líder do grupo, Sharaa, tem tentado passar uma mensagem de união e normalização. Ele anunciou a reabertura de escolas, do aeroporto de Damasco e restabelecimento do policiamento. Apesar de liderar uma milícia fundamentalista islâmica sunita, afirma que governará para todos os sírios –dando a entender que não haverá retaliação contra minorias como alauitas, do mesmo ramo de Assad, por exemplo.

Mas não está surdo ao clamor por retaliação. “Não vamos hesitar: os criminosos, assassinos, oficiais do Exército e das forças de segurança que torturaram o povo sírio serão responsabilizados”, disse Sharaa no canal de operações militares do grupo no Telegram.

“Vamos atrás dos criminosos de guerra e exigiremos [extradição] dos países que os receberam, para que sejam devidamente punidos.”

Para o verdureiro Zaeirbani, que não acredita que irá encontrar os filhos com vida, essa é a única esperança. “Só peço a Deus que haja vingança.”

PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress

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