BUENOS AIRES, PE (FOLHAPRESS) -Muitos conhecem o excepcional autor argentino Rodolfo Walsh no Brasil por sua vigorosa obra literária, com os contos reunidos em “Variações em Vermelho” ou “Essa Mulher e Outros Contos”, ambos editados pela editora 34, por seu inovador estilo jornalístico, revelado principalmente em “Operação Massacre” (Companhia das Letras), ou por sua atuação política de resistência à ditadura argentina.
Menos conhecida, porém, é uma das passagens mais comoventes de sua trajetória: a morte de sua filha Vicky, integrante da guerrilha Montoneros, com apenas 26 anos.
Maria Victoria Walsh, jovem jornalista, mãe de uma criança de apenas um ano, morreu em uma operação da repressão em Buenos Aires, quando a casa em que estava escondida foi cercada no dia 29 de setembro de 1976.
Do telhado, ela e outro Montonero tentaram resistir ao avanço contra a pequena célula guerrilheira por parte de um batalhão composto de 150 soldados e dois tanques de guerra. Vicky portava uma metralhadora, com a qual tentou conter os oficiais.
Só quando se deu conta de que não tinham chances frente às forças de repressão, gritou: “Vocês não nos matam, nós escolhemos morrer”. Posicionou, então, uma pistola na própria testa e se matou diante do olhar surpreendido dos soldados.
Walsh escreveu duas emocionadas missivas após receber a notícia do episódio: “Carta a Vicky” e “Carta a Meus Amigos”. Em ambas, enaltece a filha e demonstra profunda admiração por seu compromisso. “Sua lúcida morte é uma síntese de sua curta e bonita vida. Não viveu para ela, viveu para outros, e esses outros são milhões”, em referência ao povo argentino.
“Oração”, lançado agora no Brasil pela editora Manjuba, é uma longa reflexão sobre esse episódio, a memória e o imenso trauma argentino daquela época, escrito pela jornalista, ensaísta e crítica literária María Moreno.
Vicky e Rodolfo, que seria assassinado no ano seguinte por um “grupo de tarefas” agentes da repressão do Estado, são objeto de análise da autora em um livro que mistura suas próprias memórias, ensaio e uma importante investigação sobre a história argentina recente.
Moreno também deixa várias perguntas no ar, como aquelas relacionadas à perda, à memória coletiva e ao que motiva os indivíduos a continuar vivendo ou interromper a vida.
Aos 77 anos e recém-recuperada de um AVC, Moreno nunca se encaixou em um único rótulo. Sua escrita é militante e feminista, mas refinada e nada estridente, muito marcada por sua biografia pessoal. Também escreve ficção e, até o recente problema de saúde, vinha colaborando com crônicas para jornais e revistas locais.
Moreno reinterpreta ambas as cartas e outros escritos políticos de Walsh contrariando a leitura mais comum, que os inscreve no estilo do panfleto de denúncia. Ela expõe sua riqueza literária e seu método artístico. De certo modo, revela o elo entre sua escrita ficcional e a não ficcional, oferecendo uma imagem distinta e original do autor.
Dessa forma, a escritora eleva Walsh a um primeiro nível da literatura argentina, colocando-o ao lado de Domingo Faustino Sarmiento, autor de “Facundo ou Civilização e Barbárie (1845) e de Roberto Arlt e suas “aguafuertes”, escritas ao longo de sua curta vida, entre 1900 e 1942.
É muito comum que os críticos insiram o “Operação Massacre” de Walsh no “novo jornalismo”, antecipando livros como “A Sangue Frio”, de Truman Capote, pelo estilo literário com que trata um caso real: o fuzilamento de perseguidos políticos durante a ditadura anterior, aquela iniciada após o golpe contra o general Perón, em 1955.
Para Moreno, “Operação Massacre” é uma obra ainda mais sofisticada, que põe mais lenha na fogueira na discussão sobre a memória, ainda relevante nos tempos atuais.
Em tempos em que se busca uma releitura da mais recente ditadura argentina com um enfoque de gênero, Moreno aponta para o fato de que já existia uma abordagem feminista em obras da época, como é o caso das cartas entre Walsh e sua filha, nas quais o autor tratou de expor e defender sua luta em um processo de luto e resistência.
ORAÇÃO
– Avaliação Muito bom
– Preço R$ 84 (328 págs.)
– Autoria María Moreno
– Editora Manjuba
– Tradução Sérgio Molina
SYLVIA COLOMBO / Folhapress