Projeto leva direito de brincar a crianças imigrantes

CALAIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – São 15h de uma sexta-feira gelada de dezembro em Calais, no norte da França, e a ala feminina e infantil do centro comunitário para migrantes está cheia. O espaço, gerido pela organização humanitária católica Caritas, serve como um oásis para refugiados durante o dia, um local para tomar banho, ser atendido por um médico e se aquecer.

Em uma das mesas, um menino iraquiano de dois anos brinca com a voluntária inglesa Lily MacTaggart, 27. Professora de escola primária, ela é uma das coordenadoras da ONG Project Play, que se propõe a levar o direito de brincar às crianças migrantes que aguardam por uma chance para chegar à Inglaterra através do Canal da Mancha.

Em 2024, a ONG já atendeu 1251 crianças durante 309 sessões de brincadeiras. Naquela sexta-feira (13), os voluntários preparavam uma atividade sobre os cinco sentidos. “Vamos fazer máscaras sobre os sentimentos, se as crianças que encontrarmos quiserem brincar disso, é claro”, diz MacTaggart.

Ela diz isso porque os voluntários nunca sabem quantas crianças encontrarão ou qual a idade delas. A maior parte das famílias em Calais está ali de passagem, sem endereço fixo e com um mesmo objetivo: chegar ao Reino Unido.

Por isso, saem sempre preparados. No carro, vão brinquedos de bebê, fantasias, instrumentos musicais e equipamentos esportivos. Quando se dirigem aos acampamentos, onde famílias dormem em barracas de acampamento, os voluntários também levam uma tenda para proteger as crianças do frio e da chuva.

A Convenção dos Direitos da Criança da ONU estabelece que “toda criança terá direito a brincar e a se divertir, cabendo à sociedade e às autoridades públicas garantirem a ela o exercício pleno desse direito”.

“Mas não é possível brincar se você não tem um espaço seguro para isso”, diz a voluntária.

No centro comunitário, a reportagem encontrou pelo menos quatro crianças, com idades entre um e seis anos. A família do pequeno iraquiano com quem MacTaggart brincava durante a tarde tinha tentado cruzar o canal na noite anterior, sem sucesso.

Por meio de jogos, a Project Play também se propõe a ajudá-las a processar a dura realidade que enfrentam. “Nós encontramos muitas crianças com medo da polícia”, conta MacTaggart. “Elas também falam sobre ter que entrar em um barco e nos perguntam como fazer para ficarem seguras lá.”

A escola, ou falta dela, é um ponto sensível. A maior parte das crianças em Calais não consegue acessar nenhum tipo de estudo, principalmente porque as famílias acreditam que a cidade será uma parada passageira. A voluntária explica que, embora o projeto não seja educacional, muitas crianças expressam sentir falta da escola.

“Quando isso acontece, nós perguntamos o que ela gostava de aprender e tentamos montar uma atividade. Infelizmente nem sempre conseguimos encontrar a mesma criança de novo”, diz a professora.

O ano de 2024 trouxe consigo um terrível recorde. Ao menos 13 crianças e adolescentes morreram no Canal da Mancha, maior número registrado desde 2018, quando começaram as travessias por bote.

“São as políticas do Reino Unido e da França que estão empurrando as pessoas a fazerem essa travessia de forma cada vez mais perigosa”, critica MacTaggart.

O recrudescimento das ações policiais nas praias aumenta a superlotação dos botes, gerando um risco adicional para crianças: o pisoteamento. Essa foi a causa de ao menos duas das mortes infantis de 2024. Em abril, a menina iraquiana Sara, 7, foi esmagada quando um grupo de homens subiu de última hora no bote onde ela estava com a família. Em outubro, a tragédia se repetiu com uma criança de dois anos.

“Neste ano foram tantas mortes, houve sem dúvida um impacto psicológico em todo mundo, seja em quem está trabalhando ou quem está aqui vivendo esperando para atravessar, inclusive as crianças, que veem tudo o que está acontecendo”, diz a professora.

Ela afirma que conhecia ao menos uma das vítimas. “Nós nos mobilizamos para ajudar no momento do luto, dando inclusive apoio às crianças sobreviventes”, explica.

“É muito difícil, mas fico feliz que nós possamos cumprir esse papel enquanto as crianças precisam de nós”, diz a voluntária. “Mas o objetivo da nossa organização é que, um dia, a gente não precise existir.”

ANGELA BOLDRINI / Folhapress

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