Natal em abrigo para vítimas da enchente no RS tem ceia coletiva e sonho de reconstrução

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Em contraste com as paredes altas e brancas do Centro Humanitário de Acolhimento Vida, na zona norte de Porto Alegre, o colorido de enfeites como pinheiros, luzes e toucas de Papai Noel ajuda a levar o espírito natalino aos moradores de 1 dos 2vúltimos abrigos para vítimas da enchente ainda ativos no Rio Grande do Sul.

A decoração temática e o planejamento de um festejo coletivo buscam manter a tradição de uma comemoração familiar para aqueles que passarão seu primeiro Natal sem casa.

O eletricista Evaldo dos Santos, 61, costumava passar os dias 24 e 25 reunido com familiares. Neste ano, serão apenas ele e sua filha Laura, 4. “[A família] é grande, mas todos também ficaram na mesma situação que eu.”

Na noite do dia 24, Evaldo e Laura estarão entre os convidados para uma ceia de Natal oferecida aos 362 moradores, com um cardápio que inclui tender ao molho de frutas e estrogonofe de bombom como sobremesa, feito pela empresa terceirizada que atende o local. Os centros são geridos pela OIM (Agência da Organização das Nações Unidas para as Migrações).

A decoração de Natal está em todos os setores do pavilhão de 9.000 metros quadrados inaugurado em julho, e é um passatempo para os moradores, especialmente as crianças —elas representam um terço dos abrigados.

Evaldo se alegra com o fato de que Laura se diverte com a chegada da data, mesmo sabendo que estão ali porque não têm para onde ir. “Como ela é inteligente, já entendeu isso. Ela até ajuda a arrumar as decorações aqui. Ela gosta de movimento, gosta de pessoas.”

Ele ocupa o tempo com caminhadas e levando a filha para a área de recreação, enquanto tenta afastar a preocupação com o próximo ano. “Por causa da idade, não tenho conseguido emprego ou serviço”, diz o eletricista, atualmente dependente de um benefício estadual e do Bolsa Família. “Assim, conseguimos nos administrar, porque aqui não temos gastos.”

Evaldo e Laura viviam na Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre, até setembro de 2023, quando uma enchente no lago Guaíba os forçou a deixar o local. Após tentarem recomeçar em Eldorado do Sul, uma nova enchente destruiu o minimercado que ele havia aberto e comprometeu a casa emprestada onde moravam.

Hoje, tudo o que possuem veio por meio de doações, como roupas e cobertores, além de itens de higiene pessoal fornecidos pelo abrigo. Entre os pertences, folhas rabiscadas e lápis de cor espalhados pelo quarto revelam o passatempo favorito de Laura.

Sobre um gaveteiro, Evaldo mantém uma Bíblia aberta na página do Salmo 91, seu favorito. “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará”, recita de memória. “Sou hipertenso e perco o sono de madrugada, então leio para me acalmar.”

“Tenho esperança de conseguir um espaço para mim e minha menininha”, diz Evaldo. “Graças a Deus que estamos aqui. Somos bem tratados, temos banho, comida, mas não é como a nossa casa, com o que tínhamos.”

Atualmente, 722 pessoas vivem nos centros Vida e Esperança, em Canoas. Este último receberá cerca de 40 moradores do centro Recomeço, que está em processo de desativação.

No último dia 16, o governo gaúcho anunciou que os centros remanescentes serão desativados até junho de 2025. “Precisamos de tempo para organizar toda essa situação”, afirma o vice-governador Gabriel Souza (MDB), coordenador do gabinete de crise estadual.

Segundo Souza, a demora do governo federal na entrega de moradias novas exige a busca por alternativas. Atualmente, são oferecidos programas como aluguel social e estadia solidária. “Esse planejamento de mais seis meses é para que tenhamos soluções, esperando que o governo federal entregue as casas definitivas”, disse o vice-governador.

“A ideia é priorizar essas pessoas dos centros de acolhimento nas soluções próprias que o estado tem, algumas em parceria com os municípios, para que consigamos desativar os abrigos sem prejuízo às famílias.”

“Vou ficar até junho, se me deixarem. Vou ficar aqui até conseguir minhas coisas”, afirma Valéria Rosa Nascimento, 58.

Ela vive no abrigo com o neto Dalessandro, 15, desde que a enchente cobriu o teto de sua casa no bairro Humaitá. “A água demoliu a porta e levou a geladeira, o balcão da pia… a cama parou na freeway.”

Nos últimos cinco meses, Valéria divide seu tempo entre o expediente noturno como faxineira e as atividades de artesanato oferecidas no centro de acolhimento. Neste mês, confeccionou guirlandas natalinas e participou da produção de pulseiras de crochê para um projeto de geração de renda para mulheres. “Está me ajudando muito, é uma terapia. Não me deixa pensar besteira.”

Nesse período, Valéria criou amizades com a equipe do abrigo e também ajuda outras mulheres cuidando de seus filhos enquanto trabalham.

Aos poucos, conseguiu utensílios de cozinha e comprou um micro-ondas para sua futura casa. Seu próximo objetivo é adquirir uma máquina de lavar e investir na carreira de artesã com os aprendizados do abrigo.

Ela foi convidada a passar o Natal com parte da família em Alvorada e pensa em aceitar, mas quer se organizar para passar uma das refeições do feriado no centro de acolhimento.

Otimista com 2025, Valéria deseja que a data seja uma celebração, sem reflexões sobre as dificuldades enfrentadas no ano. “Não quero pensar em nada. Quero a vida para frente, presente e futuro. Para trás, não quero saber”, afirma. “Vou reconstruir tudo. Ganhei roupas, ganhei abrigo, e não quero pensar em coisas ruins.”

CARLOS VILLELA / Folhapress

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