Caros leitores. O texto abaixo é uma crônica, portanto fruto da ficção.
Agapito votou no Bolsonaro porque gostou da ideia de ter um presidente eleito para defender a Pátria, a família, o conservadorismo e a política liberal na economia. Agapito sempre andou na linha, com boletos em dia e a agenda rigorosamente atualizada. Para ele, era uma questão de honra cumprir todos os seus compromissos futuros e mesmo que alguns fossem sacrificantes, não poderia viver sem a segurança de saber o que faria no dia seguinte, na próxima semana, no mês que vem, até o final do ano…. Tudo estava ali, escrito a lápis 2 B numa letra de forma que dava um toque impessoal às anotações. Agapito sentia uma espécie de conforto espiritual ao abrir sua agenda preta de capa dura logo cedo para ver quais missões teria de cumprir no escritório, no intervalo do almoço, ou quando voltasse para a casa, por volta das 17h.
Tipo certinho estava ali, o Agapito, com sua camisa pólo abotoada até o colarinho, cabelo matematicamente repartido pouco acima da orelha para disfarçar a calvície, bigodinho fino e sua amada agenda preta que dormia e amanhecia na mesa do escritório. Embora não fosse capaz de pensar num palavrão, não achava ruim quando o presidente aparecia na televisão desfilando aquela coleção de xingamentos. De tão correto, aguentava calado quando ouvia da mulher que era um molenga por não ter conseguido acertar uma barata com uma chinelada. O engraçado é que quando o presidente, ainda deputado, homenageou um torturador, ele não achou ruim, pesquisou na internet quem era o Coronel Ustra, e por um instante chegou a pensar que gostaria de ter a bravura do presidente e, quem sabe, ser também um tiozão que fala o que lhe dá na telha.
Além de votar no presidente durão, Agapito cultivava outra contradição moral. Frequentava um motel. Mas não era nada do que algum desavisado pudesse pensar. Era ali que ele se dava ao luxo de encontrar um pequeno grupo de amigos aos sábados à tarde, isso porque um dos integrantes da confraria, também cidadão honesto, era o proprietário do estabelecimento. No motel, bem distante do centro de Ribeirão Preto, Agapito dava uns golinhos num copo de cerveja que mantinha a tarde inteira ao seu lado e arriscava um violão. Com três ou quatro acordes básicos soltava um Roberto Carlos de uma maneira peculiar. Como se estivesse gaguejando ele recitava aos tranquinhos: “por/que/me arrasto a teus pés?/ por/que/me dou tanto assim?“ Agapito fazia da letra de Desabafo uma espécie de profissão de fé. Se à luz do dia se imaginava como um xerife Bolsonaro, à noite, queria ser o Robertão.
Veio a pandemia e por estar na casa dos 60, Agapito teve que encarar o home office, com uma saída nervosa e meio às pressas do escritório. Nem percebeu que havia outra agenda de capa preta em cima da mesa. Iguaizinhas, a poucos centímetros uma da outra, Agapito passou a mão na que estava mais perto e saiu para a longa quarentena. Sempre de olho na agenda.
DIA 10 DE MARÇO – Ligar para a madrinha.
Estranho. Nem lembrava mais quem era sua madrinha de batismo. Mas se estava ali, escrito a lápis, em letra de forma, era lei. Depois de alguns contatos com parentes, descobriu o telefone da madrinha que atendia por Bega e ligou. A madrinha, perto dos 90, também não se lembrava do afilhado. Além disso, não ouvia direito. Ficou aquela conversa torta, mas o compromisso estava cumprido e riscado da agenda.
DIA 19 DE MARÇO – Consulta com dentista para avaliar colocação de aparelho.
Aos 60 anos, colocar aparelho? Nem se deu ao trabalho de ver se tinha o contato do dentista. Até àquele dia da quarentena os dentistas só estavam atendendo emergências, tinha um bom motivo para não cumprir.
DIA 21 DE MARÇO – Live da dupla Osmar e Oceano.
Era um sábado. Sem nada prá fazer, ok.
DIA 22 DE MARÇO – Vai chegar encomenda da boa. Não esquecer de pedir pelo motoboy.
A quarentena estava deixando o Agapito um pouco agitado, a agenda continuava a nortear a sua rotina, mas agora o clima estava ficando bem estranho. No fundo, Agapito sabia que alguma coisa, além da pandemia, estava fora da ordem. Mas nada como uma boa desculpa, um álibi, para justificar ações fora da rotina. Agapito sentia um bem estar profundo quando era obrigado a ficar por mais de uma hora na sala de espera de um consultório médico. Para todos os efeitos, não estava trabalhando porque cuidar da saúde era prioridade e ele não tinha culpa do médico não ter nenhum compromisso com o horário. Ninguém poderia acusá-lo de estar matando o expediente. Não era culpa dele. E agora, com aquela encomenda, acontecia o mesmo: não queria, mas estava ali na agenda. Esperou toda família dormir e assim que o ronco da moto cresceu na viela do bairro Campos Elíseos, foi de meias até o portão pegar o bagulho. Consumiu a maconha na despensa da cozinha e cantou Desabafo sem tranquinhos nem gaguejo. Na manhã seguinte, segunda-feira, a mulher dele só estranhou o prato vazio na geladeira com a goiabada raspada até o fim.
DIA 29 DE MARÇO – Aniversário da Ritinha. Só volta de Londres no final do ano. Mandar msg.
Claro que Agapito não tinha o contato da Ritinha. Mas como ela seria? Porque foi para Londres? Quantos anos ela estaria fazendo?
Agapito desconfiava que os colegas de trabalho o consideravam um tipo limitado, tinha consciência disso e por vezes até se aproveitava do estereótipo para não ter que resolver algum problema burocrático mais complicado. Mas, burro, ele tinha certeza que não era. A letra de forma escrita a lápis 2 B apenas se parecia com a dele, porém, com certeza não fora ele o autor das anotações. No fundo, desde o início sabia que havia trocado as agendas que estavam em cima da mesa e agora vivia num estágio controlado de consciência de modo a sublimar a realidade e ao mesmo tempo vestir a pele de uma nova e invisível personalidade regida por compromissos bem diferentes dos habituais e, sem dúvida, muito mais intensos, aventureiros, interessantes, picantes, enfim, anotações de uma agenda pulsante e jovem.
12 DE ABRIL – Fazer aquilo…
Esta anotação, sim, era dele. Agapito apagou a original e reescreveu de modo a só ele saber qual era o compromisso daquele dia 12 de abril. Anotou o telefone de contato e remarcou o “fazer aquilo” para o primeiro dia útil de junho, data prevista para a flexibilização da quarentena. Estaria lá às 7h30 da manhã, sem falta.
Claro que Agapito já havia espiado a página inicial da agenda onde os dados de identificação pessoal apontavam para Alberto, o Betinho da TI, alto, magro, barbudo, cabelo de samurai e 30 anos mais jovem. Cruzava com ele de vez em quando no cafezinho e olhava para o Betinho com aquela distância instintiva e defensiva que separa gerações. Nunca havia pensado nos compromissos do Betinho fora do trabalho e agora estava ele – o funcionário correto e cumpridor de suas obrigações – determinado a “fazer aquilo” que ordenava a agenda trocada, justo no momento em que dava entrada no seu processo de aposentadoria; pensou em tudo isso enquanto mastigava um naco de goiabada naquele domingo de Páscoa.
21 DE ABRIL – Emendar feriadão para conhecer Ouro Preto.
1 DE MAIO – Emendar feriadão em Delfinópolis.
8 DE MAIO – Comprar presente do Dia das Mães
A mãe do Agapito morrera havia cinco anos, os outros compromissos não poderiam ser cumpridos por conta da quarentena, mesmo assim, mexiam com a cabeça cartesiana e muito certinha daquele que não se concebia sem olhar a agenda, mesmo que não fosse a dele. Mas todos estes compromissos que deixariam de ser cumpridos pelo Betinho, ou por ele, eram apenas passatempo, porque a fixação do Agapito era a página do dia 1 de Junho, data marcada para a reativação das atividades econômicas, dia de “fazer aquilo”.
E o dia chegou. Pegou uma máscara no varal e às 7h30 da manhã já estava a postos para cumprir o que determinava a agenda. Nunca pensou que fosse doer tanto, mas aguentou firme. Ainda sobrou tempo para chegar antes de todos ao escritório que abria às 9h. Colocou a agenda preta em cima da mesa e como já previra, viu o Betinho se aproximar com a outra agenda embaixo do braço e dois copos descartáveis cheios de um café fumegante.
– Agapito! Que bom te reencontrar – disse o Betinho com certa dificuldade, típica dos barbudos que precisam usar máscara. – Você viu que trocamos as agendas?
– Vi sim. Aqui está a sua – disse Agapito tirando a máscara para tomar o café.
Betinho engasgou e fez força para o café não espirrar num chuvisqueiro quente na cara do colega.
– Nossa! Que susto. Nunca imaginei que você fosse capaz disso. Eu mesmo cheguei a agendar, mas, sabe, a quarentena…Acho que vou ter que remarcar.
O bigodinho fino do Agapito fez uma curva para cima no momento em que ele sorriu e deixou ainda mais impressionante o “aquilo”. Agapito, voltou ao trabalho modificado, com uma grossa argola de metal transpassando a cartilagem, um reluzente piercing no nariz, culpa da quarentena e das agendas trocadas.
- Esta crônica é uma homenagem ao mestre Luis Fernando Verissimo