SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Às 7h26 do dia 6 de dezembro, uma sexta-feira, Raphael Correa Druciak, 42, atravessava a rua numa das esquinas da avenida Indianópolis, na zona sul de São Paulo, quando seu rosto foi filmado e escaneado por uma câmera com tecnologia de reconhecimento facial. Ele estava foragido havia cerca de três meses.
Druciak, conforme o banco de dados do Judiciário apontou, é condenado por dois homicídios em 2002 na região metropolitana de São Paulo. A prefeitura da capital afirma que ele também é integrante da facção criminosa Comando Vermelho.
Ele cumpria pena num presídio em Mirandópolis, no noroeste paulista, e recebeu o benefício da saída temporária em setembro, mas nunca voltou. Agentes da GCM (Guarda Civil Municipal) o abordaram naquela mesma manhã e o levaram até uma delegacia, que o encaminhou de volta ao sistema prisional. A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Druciak.
Dois anos depois de o programa Smart Sampa se tornar motivo de controvérsia, a gestão Ricardo Nunes (MDB) tem divulgado prisões como essa para defender a iniciativa. O projeto, que integra câmeras de monitoramento a tecnologias de inteligência artificial, é a maior vitrine da prefeitura na área de segurança, citada como o maior problema da cidade pela maior parte dos paulistanos, segundo o último levantamento do Datafolha sobre o tema.
As críticas ao programa apareceram quando ele ainda estava no papel. A primeira versão do edital do Smart Sampa dizia que cor da pele e casos de vadiagem poderiam ser usados como critérios para identificar suspeitos nas imagens a prefeitura afirmou à época que isso ocorreu devido a um erro de tradução, e o problema foi corrigido antes de ir à fase de licitação.
O TCM (Tribunal de Contas do Município) chegou a suspender o processo por receio de possíveis violações da Lei Geral de Proteção de Dados e dos direitos de minorias, como a população negra, mas acabou liberando após a prefeitura prestar esclarecimentos.
“Não vou negar que passei muito nervoso com esse negócio”, desabafou Nunes na cerimônia de inauguração da central de operações do programa.
No último dia 4 de janeiro, a inauguração completou seis meses. Até segunda (6), ao menos 1.400 pessoas haviam sido presas por delitos flagrados pelas câmeras, e 28 desaparecidos foram encontrados com a tecnologia de reconhecimento facial.
No período, 354 foragidos foram presos. Esse número só começou a aumentar de forma expressiva em novembro, após ajustes técnicos no sistema.
O programa tinha passado a contar com os dados do cadastro de foragidos mantido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) dois meses antes. Foram 15 prisões até meados de novembro, e então outras 155 em pouco menos de um mês.
“Até hoje, não ocorreu nenhum caso de uma pessoa ser identificada, abordada pelos guardas e se descobrir que não era a pessoa que o sistema identificou. Todos eram de fato foragidos”, diz o secretário-adjunto de Segurança Urbana, Junior Fagotti, um dos idealizadores do programa. “Se o sistema não tiver no mínimo 90% de certeza de que se trata da mesma pessoa, o alerta nem aparece para nós.”
A cautela tem fundamento. No Brasil, falhas em tecnologias de reconhecimento facial já levaram à prisão de inocentes em mais de um caso. Desde 2020, houve casos de engano na identificação de suspeitos por sistemas usados no Distrito Federal, na Bahia e no Rio de Janeiro.
Há dois anos, um homem negro ficou detido por 26 dias na Bahia acusado de roubo até que as autoridades reconhecessem que o crime tinha sido cometido por outra pessoa, dez anos antes. Em janeiro de 2024, uma mulher foi detida no Rio por causa de um erro na base de dados: ela foi identificada pelo sistema como foragida, mas ela já cumpria pena em regime aberto.
Considerando apenas os números da Justiça estadual, há mandados de prisão contra mais de 3.500 pessoas foragidas em São Paulo. Isso significa que, com as 167 prisões, o Smart Sampa ajudou a capturar 4,5% desse total.
O CNJ e o tribunal paulista não informam o ritmo das prisões e da inclusão de novos nomes no cadastro de foragidos, nem publicam dados por município, o que prejudica a análise dos números do Smart Sampa. Num só dia 9 de dezembro, quando o secretário recebeu a Folha, até por volta das 16h30, foram oito foragidos identificados e detidos.
Há especialistas em segurança pública, no entanto, que chamam atenção para os riscos envolvidos em programas de vigilância urbana. Segundo Daniel Edler, pesquisador da Universidade de Glasgow (Escócia) e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, experiências similares no mundo já mostraram que o uso da tecnologia pode ser deturpado e que há pouca certeza sobre sua efetividade no combate ao crime de forma geral.
“As evidências sobre o impacto das câmeras nos índices criminais não são claras nos estudos científicos, você pode fazer com que um grupo de criminosos simplesmente vá para outro lugar [onde não há vigilância]”, diz Edler.
“Toda vez que temos um problema social complexo surge alguém com uma inovação tecnológica para resolvê-lo. E espalhar câmeras com reconhecimento facial pode até servir para alguns casos, mas isso cria outros problemas.”
Ele mesmo já se deparou, no Rio de Janeiro, com um caso em que um policial fez uso pessoal do sistema: após se envolver num acidente de carro, usou seu acesso privilegiado às imagens para abastecer um processo e mostrar que não teve responsabilidade.
O mesmo poderia ser feito para vigiar cônjuges ou desafetos, identificar manifestantes em protestos para fins de perseguição política ou combater problemas que estão longe de ser prioridade de segurança pública.
Apesar do foco na segurança tanto no debate público sobre o programa e na comunicação da própria prefeitura, o Smart Sampa acompanha mais do que identificação de suspeitos, desaparecidos e flagrantes de crimes. As câmeras também monitoram pontos de alagamento, acidentes de trânsito e outras emergências, e a proposta é que a sede do programa na rua 15 de Novembro, no centro histórico, abrigue equipes de vários órgãos e concessionárias de serviços públicos.
Segundo Fagotti, a GCM está fazendo o atendimento emergencial de ocorrências que depois são assumidas por equipes da Defesa Civil, da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) ou órgãos estaduais. Pelo fato de terem mais mão de obra disponível e estarem em contato direto com a central do Smart Sampa, eles chegam aos locais primeiro e podem fazer bloqueios de trânsito, atender feridos e outros procedimentos.
O resultado, ainda segundo o secretário, é o aumento de produtividade dos guardas. “O contribuinte está pagando o mesmo valor para cada salário dos guardas, mas eles estão trabalhando muito mais”, diz.
O programa hoje tem mais de 90% das 20 mil câmeras contratadas pela prefeitura, e a empresa responsável tem até abril para entregar o restante. A maior parte delas se concentra no centro e na zona leste da cidade. Além disso, já foram integradas 4.800 câmeras de empresas ao sistema o que corresponde a pouco menos da metade da meta.
Entre elas estão companhias de segurança particular e equipamentos instalados em totens luminosos nas portas de condomínios e comércios. A prefeitura ainda precisa avançar na integração do seu sistema com as redes de câmeras de concessionárias de serviços públicos, como Metrô e CPTM. A regra é que todas sejam câmeras ao ar livre. O Smart Sampa não monitora ambientes internos.
O secretário diz que, por ora, não há planos para que a guarda use câmeras corporais, equipamento que está no centro do debate sobre o controle do uso da força policial.
“O que nós gostaríamos é de não viver num país com tantos roubos e furtos”, diz Fagotti, quando questionado sobre a necessidade de espalhar câmeras pela cidade como resposta à violência urbana.
“Não concordo com o uso da palavra vigilância para descrever o programa. Até porque é impossível vigiar 20 mil câmeras ao mesmo tempo. O programa respeita inteiramente a LGPD [Lei Geral de Proteção a Dados Pessoais]. O cidadão comum não está sendo vigiado.”
TULIO KRUSE / Folhapress