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Carlito – remando contra a maré (Capítulo IV – o fim)

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Carlito – remando contra a maré (Capítulo IV – o fim)
Gustavo junqueira

Capítulo IV: Longo naufrágio (parte 4 de um total de 4)

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A morfina, derivada do ópio, foi criada no início do século XIX pelo farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Serturner, que batizou o novo remédio em homenagem ao Deus grego do sono, Morfeu. Difundida a partir de 1853 com a invenção da seringa, sempre foi usada para aliviar dores, mas ganhou adeptos por proporcionar uma pequena mas agradável euforia e um tremendo bem estar. A ciência e a humanidade, no entanto, ainda levariam algumas décadas para estudar e entender melhor as dependências física e psicológica geradas pelo uso contínuo da droga. O usuário precisa de doses cada vez maiores para poder chegar ao ápice.

Aplicada de forma intramuscular, subcutânea, intravenosa ou ainda via oral, seus efeitos duram de 4 a 6 horas. A falta do uso da droga pelo dependente causa a síndrome da abstinência, uma terrível reação manifestada com náuseas, vômitos, diarreia, cólicas intestinais, lacrimejamento, calafrios, câimbras musculares, tremores, ansiedade e dores generalizadas que podem durar cerca de 10 dias. Carlito conhecia gente que havia chegado a este estado lastimável, mas achou que, com sua força e determinação para vencer adversários no remo, poderia fazer uso recreativo da morfina apenas quando quisesse.

No início até que conseguiu, mas logo sua vida se atrapalhou. Perdia os treinos ou o interesse em se exercitar, já não conseguia trabalhar. Os colegas do remo perceberam, inclusive pelas marcas de agulhadas nos braços e nas pernas. João Viana e Antonio Ribeiro, do Flamengo, para darem a ele um novo estímulo físico, até o convidaram para um raid que planejavam fazer a remo, do Rio a Santos, e que foi concretizado em janeiro de 1928 num total de 93 horas. Nada funcionou para tirar Carlito daquele pesadelo e os negócios em que estava envolvido foram praticamente abandonados. A família em Poços de Caldas demorou a descobrir, o que aconteceu depois dos sucessivos pedidos de dinheiro. Seo Cruz foi ao Rio, tentou levá-lo para casa para tratamento, mas Carlito disse que se curaria na capital e abandonaria o vício.

Numa de suas crises de abstinência, nervoso e ansioso, envolveu-se numa discussão e agrediu um farmacêutico que relutava em vender a morfina para ele. O caso foi parar na polícia e na Justiça, onde Carlito respondeu processo em 1929 enquadrado no artigo 303 do antigo Código Penal, de 1890 – “Offender physicamente alguem, produzindo-lhe dôr ou alguma lesão no corpo”. A má notícia veio no final daquele ano, quando sua mãe Celina morreu com problemas no coração. Ela ainda era um porto seguro para ele em suas viagens para Poços de Caldas e uma maneira de dobrar o pai em seus pedidos de dinheiro.

A República Velha chegou ao fim em 1930 e o início da era Vargas já mostrava um Carlito decadente na capital. Já não era uma figura desejada e admirada nas rodas mais bacanas, mas quase um intruso sempre em busca de um empréstimo ou doação. Já não treinava e agora vivia em razão da morfina, que passou a ser mais controlada. Tentou algumas internações, mas nas primeiras crises de abstinência corrompia o enfermeiro ou fugia da clínica. O corpo forte ainda resistia, mas a dependência só era aplacada com mais uma dose, mais uma agulhada que trouxesse alívio e algumas horas de uma euforia quase cinza.

Com o tempo, não restou alternativa senão recorrer aos irmãos que também moravam no Rio. Cylio da Gama Cruz, que se formara em Engenharia de Minas em Ouro Preto, morara na Alemanha nos anos 20 e, a partir da década de 30, empreendeu até se tornar um empresário de sucesso no envase e distribuição de água mineral, as Águas Salutaris, dava apoio financiando a vida errante e triste do irmão mais velho. Cylio também controlava a Águas de Caxambu, que administrou o Hotel Caxambu de 1943 a 1973. E o irmão mais novo, Tião, que conquistou uma boa posição social investindo nas salinas na região dos Lagos, também ajudava de vez em quando. Ambos moraram no Flamengo, bairro em que Cylio comprou um apartamento de 1000 metros quadrados com vista para o mar onde, cerca de duas décadas antes, o irmão mais velho deslizava suavemente em barcos a remo.

Antes disso, Cylio morou numa casa na Av. Vieira Souto, de frente para o mar, numa Ipanema ainda tranquila e com poucos prédios. Tanto ele quanto Tião prosperaram com concessões públicas graças também aos bons contatos estabelecidos com a cúpula do governo varguista que frequentou Poços de Caldas na época do Estado Novo. Carlito, certa vez, quando foi à Vieira Souto buscar uma recorrente ajuda financeira do irmão, aproveitou o fim de tarde quando foi embora para, descalço, caminhar na areia da cinematográfica praia vazia. Sentou-se para assistir ao pôr do sol ainda aproveitando o bem-estar da última picada. Com o olhar fixo no horizonte, derramou algumas lágrimas ao refletir sobre a terrível maré que o acompanhava havia anos. Não demorou muito. Logo se levantou para ir atrás de seu fornecedor, a quem devia dinheiro e que só voltaria a reabastecer o freguês com morfina quando a dívida fosse quitada.

Em 27 de novembro de 1949, exatos 20 anos depois da morte de sua esposa Celina, é a vez do octogenário seo Cruz partir desta para melhor. Já sem nenhuma razão para viver no Rio de Janeiro, onde morara nos últimos anos numa pensão próxima da Lagoa Rodrigues de Freitas, palco das regatas cariocas desde 1928, Carlito acabou voltando para Poços de Caldas nos anos 50. Lá, ainda tinha as irmãs Anita e Carola, esta última casada com Haroldo Junqueira. O casamento de meus avós, realizado em Aparecida do Norte em outubro de 1929, longe das disputas políticas de Poços de Caldas, conseguiu aos poucos selar a paz entre seo Cruz e os Junqueiras.

Em Poços, Carlito ainda viveria mais um quarto de século como um bom zumbi. O que lhe restou de herança, e o que conseguia amealhar com as irmãs, cunhado, sobrinhos e amigos, somava o suficiente para ter uma vida possível. Morou muitos anos num quarto do Hotel Bandeirantes, ali na praça principal de Poços de Caldas, próximo às termas, ao coreto, ao Hotel Palace, à loja da Cometa. Circulava o dia inteiro pela rua em conversas pontuais, com os amigos da praça, com os passantes. Duas ou três vezes por semana ia almoçar no amplo chalé da Rua Amazonas, a residência construída em 1887 e que pertencia a meus avós Haroldo e Carola desde a década 30.

Chegava pela entrada de serviço e, na cozinha, a empregada negra de mão cheia Maria, vinda da fazenda menina e que trabalhou mais de 40 anos na casa, lhe servia um prato de comida. Não se sentia à vontade para circular nos outros cômodos, e tão pouco minha avó fazia gosto nisso, temerosa das crises repentinas do irmão.

Ele deu algum trabalho naqueles anos 60 e 70. Não foram raras as vezes em que meu avô saía de madrugada em busca de um farmacêutico ou médico mais solidário que fornecesse remédio ou a morfina que trouxesse alívio para as devastadoras crises de abstinência que, vez ou outra, Carlito não podia evitar, quando cada órgão de seu corpo cobrava a conta por não obter a morfina necessária em tempo. Minha mãe Nilza, que em 1960 começou a frequentar Poços após se casar com meu pai Gustavo, conta que certo dia correu até a cozinha atrás de um de seus filhos pequenos e se deparou com um senhor simpático, atencioso e de olhos cansados, mas atentos. Era Carlito. Ele cumprimentou-a de forma educada, se apresentou e disse que era a “ovelha negra da família”.

Foi internado algumas vezes para tratar de doenças e sequelas de décadas de dependência de morfina, e que não são poucas: depressão, impotência, prisão de ventre, paralisia do estômago e por aí vai. E sempre saía, exibindo uma resistência e saúde que surpreendiam até os médicos. Cylio Neto, neto do irmão Cylio e que nos anos 70 se encontrava com Carlito em Poços de Caldas, diz que ele chegava na rua por trás de algum conhecido e, com os dedos imitando um alicate, apertava de surpresa o trapézio do dito cujo e dizia: “Fala pinico”! Se a pessoa falasse, ele soltava os dedos; se não dissesse, o ex-remador brincalhão continuava apertando até que a vítima se ajoelhasse de dor … força e um espírito de moleque ainda tinha. Vestia sempre camisas de manga comprida, para esconder marcas e feridas nos braços, e um paletó jogado sobre os ombros. Alinhado, transitava com roupas usadas de boas marcas que a irmã Carola lhe proporcionava do elegante guarda-roupa de Haroldo Junqueira.

Dentro do seu quarto no Hotel Bandeirantes, preservava um destilador. Diariamente, com os vidros do remédio contra tosse Gotas Binelli que comprava aos montes, ou com os xaropes de codeína que o ônibus que vinha de São Paulo trazia de encomenda, Carlito se transformava num alquimista. Extraía pacientemente de cada medicamento o que este possuía de morfina e podia então se aplicar para ter suas poucas horas de sossego antes da próxima dose.

No dia 02 de setembro de 1976, ligaram em Poços de Caldas de um hospital em Santa Rita do Passa Quatro, em São Paulo, avisando que um paciente de 79 anos, que lá estava internado, acabara de falecer. A causa: edema agudo de pulmão – arteriosclerose cerebral, informou o atestado de óbito. Morreu sozinho, como viveu a maior parte da vida.

Não gostaria de terminar esta biografia de Tio Carlito de forma tão seca e sombria. Foi um homem de seu tempo que pagou pelas escolhas que tomou. Foi um touro indomável? Um coitado viciado? Não, apenas Carlos da Gama Cruz, um brasileiro que teve tudo e nada ao mesmo tempo, das glórias do remo aos picos de morfina. Cylio Neto me contou que, ali em meados dos anos 70, Carlito pediu a ele um favor. “O Flamengo irá me homenagear no Rio de Janeiro juntamente com antigos atletas numa cerimônia no clube. Não tenho condições de ir, por favor, vá lá me representando”, solicitou, envergonhado e abatido para comparecer a uma solenidade que o levasse aos seus tempos áureos. O sobrinho-neto foi lá, engravatado, recebeu a medalha e a entregou a Carlito, em mãos, em Poços de Caldas. Foi sua última, distante e merecida glória.

F  I  M