SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nas primeiras negociações diretas para discutir o fim da Guerra da Ucrânia e preparar a cúpula entre Donald Trump e Vladimir Putin, Estados Unidos e Rússia concordaram em estabelecer um grupo de trabalho. Os americanos sugeriram que o fim das sanções a Moscou estarão na mesa.
O tom geral não poderia ser mais favorável à Rússia, que invadiu o vizinho há quase três anos. Não havia ucranianos ou europeus à mesa na Arábia Saudita, e o secretário de Estado americano, Marco Rubio, insinuou que isso ocorrerá só mais à frente.
“Todos os envolvidos neste conflito terão de estar de acordo com o que for aceitável para eles”, disse, afirmando que haverá concessões de lado a lado. Ante a queixa europeia de exclusão, sugeriu para horror de Bruxelas que a União Europeia deverá ser chamada “em algum ponto mais à frente” porque “eles também impuseram sanções” aos russos.
Ou seja, as penalidades que afligem a economia russa estão sendo discutidas. Seu par russo, Serguei Lavrov, disse estar satisfeito com o início das conversas e confirmou que “há alto interesse [dos dois lados] em levantar barreiras econômicas”.
De seu lado, a delegação russa chegou a Riad com um dos maiores ataques aéreos da guerra ocorrendo sobre a Ucrânia, como forma de marcar posição de força, ao gosto das negociações de Trump. Foram lançados 176 drones, 103 dos quais foram derrubados.
Por cerca de quatro horas e meia, os rivais concordaram também em tratar da relação esgarçada entre as duas maiores potências nucleares do mundo, segundo comunicado. Temas como cooperação econômica, preço de energia e outros também estiveram em pauta.
Antes, os russos morderam e assopraram. O porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, reafirmou que a Rússia não se opõe à entrada da Ucrânia na UE (União Europeia), em oposição ao ingresso na Otan, a aliança militar liderada pelos EUA. “Nós estamos falando de processos de integração econômica. Aqui, claro, ninguém pode ditar nada para outro país”, disse.
“Há uma posição completamente diferente, é claro, em questões relacionadas à segurança ou à defesa ou alianças militares”, disse. A fala ignora o artigo 42.7 do Tratado da União Europeia, que, assim como o famoso item 5 da carta da Otan, determina assistência militar mútua em caso de ataque externo.
Mais tarde, a chancelaria russa endureceu sua posição, dizendo que não se contentaria só com uma promessa de neutralidade, e sim com a anulação do convite feito à Ucrânia pela Otan para negociar sua admissão, do distante 2008.
O próprio Putin já dissera algumas vezes, a começar em 2022, que não se opunha à negociação entre Kiev e Bruxelas. É uma mudança ante o que fez em 2013, quando condenou como “uma ameaça” a Moscou a negociação ao fim frustrada de um acordo entre a Ucrânia e bloco.
O fracasso levou aos protestos que derrubaram o governo pró-Rússia em Kiev, o que Putin respondeu com a anexação da Crimeia, o apoio a separatistas no leste e, em 2022, com a invasão.
NEGOCIAÇÃO É A PRIMEIRA DIRETA DESDE 2022
As conversas na capital saudita, Riad, são as primeiras oficiais desde o fim de março de 2022, quando ocorreu a última rodada presencial entre negociadores russos e ucranianos. Após encontros em Belarus, aliada da Rússia, os times quase chegaram a um acordo em uma reunião em Istambul.
Os termos lá não eram muito diferentes dos que vêm sendo ventilados em contatos indiretos desde então: neutralidade e segurança ucranianas, concessões territoriais temporárias à Rússia, com rediscussão num futuro distante, entre outros. Mas o clima agora é favorável a Moscou.
Peskov disse que Putin poderia falar diretamente com o homólog ucraniano, Volodimir Zelenski, “se necessário”, mas voltou a questionar a legitimidade do presidente, cujo mandato terminou em maio passado sob lei marcial, a Ucrânia não pode realizar eleições. Aqui e ali surgem rumores de que obrigar um pleito pode estar no radar de Trump, aliás.
O presidente da Ucrânia, por sua vez, foi à Turquia encontrar-se com o colega Recep Tayyip Erdogan, que busca uma posição mediadora. O líder turco disse que começou negociações bilaterais sobre o fim da guerra, a exemplo de Rússia e EUA.
COMITIVA RUSSA INCLUI EX-BANQUEIRO
A comitiva russa foi encabeçada pelo chanceler Lavrov, o decano da diplomacia mundial, e o experiente Iuri Uchakov, que assessora Putin desde 2012.
Eles estão acompanhados por Kirill Dmitriev, o chefe do fundo soberano russo, figura famosa por ter financiado e promovido a vacina anti-Covid Sputnik V, que tentou vender até ao Brasil. Ex-banqueiro educado nos EUA, sua presença sugere que o tema das sanções contra a Rússia será discutido apesar de participar de reuniões preparatórias, ele não estava à mesa na foto oficial.
Em uma rápida fala antes do encontro, no Palácio Diriyah, Dmitriev afirmou que as conversas serão mais amplas que Ucrânia, um outro sinal do Kremlin, e poderão incluir o programa nuclear do Irã.
Em janeiro, Rússia e Irã assinaram um acordo aprofundando seus laços econômicos e militares, e com a posição enfraquecida de Teerã devido às guerras de Israel na esteira do 7 de Outubro, Putin pode ter o que oferecer aos EUA, arquirrivais do país persa ao lado do Estado judeu.
Do lado americano, estiveram presentes Rubio, o assessor de Segurança Nacional, Michael Waltz, e o enviado para o Oriente Médio, Steve Witkoff. O encontro foi mediado pelo chanceler saudita, príncipe Faisal bin Farhan a-lSaud e seu assessor de Segurança, Mosaad bin Mohammad al-Aiban.
As conversas começaram às 10h30 (4h30 em Brasília). “Acho que é muito cedo para falar em compromissos, mas podemos dizer que os lados começaram a ouvir um ao outro”, disse Dmitriev ao fim das quatro horas e meia, que foram interrompidas por um rápido almoço.
“Vamos tratar de irritantes na nossa relação com o objetivo de dar os passos necessários para normalizar a operação de nossas respectivas missões diplomáticas”, disse a porta-voz de Rubio, Tammy Bruce.
O enviado de Trump para Rússia/Ucrânia, Keith Kellogg, não esteve presente: ele ficou em Bruxelas tentando acalmar os europeus acerca das negociações, lançadas de forma intempestiva pelo presidente americano em um telefonema a Putin na semana passada.
Como a Folha de S.Paulo havia relatado, o Kremlin havia colocado um pé no freio da miríade de contatos realizados indiretamente por prepostos de Trump desde a posse do americano, há um mês. Deu certo: o mercurial presidente entrou no circuito e, se não cumpriu a bravata de “acabar com a guerra em um dia”, ao menos viu algo acontecer.
Segundo Uchakov, o encontro entre os dois líderes está a caminho, mas não deve ocorrer na semana que vem, como foi especulado na imprensa russa. Waltz foi na mesma linha. Ele também disse que os EUA “estão consultando seus aliados quase todos os dias”, tentando afastar a impressão de uma imposição.
Zelenski já disse que não aceitará nenhum acordo que não o ouça, e líderes europeus se reuniram para reafirmar que o continente precisa se rearmar para não mais depender dos EUA na segunda (18), embora sem ter muito o que fazer acerca das conversas em Riad.
A posição autoritária americana foi deixada clara na sexta (14), quando o vice-presidente J.D. Vance proferiu um incendiário discurso em Munique criticando duramente os países europeus por coibirem sua extrema-direita, dizendo que eles deveriam se virar em termos defensivos pois os EUA não estariam lá para sempre.
IGOR GIELOW / Folhapress