Carolina Maria de Jesus foi uma das vozes mais potentes da literatura brasileira do século 20, não apenas por sua prosa reveladora em Quarto de Despejo, mas por sua poesia, em que expressava suas angústias, lutas e esperanças.
Sua obra aborda questões de classe, gênero e, especialmente, de raça, com uma visão crítica e dolorosa da sociedade brasileira e da marginalização das pessoas negras e periféricas.
Ao longo de sua trajetória, Carolina se tornou uma referência para aqueles que buscam compreender as dinâmicas do racismo e a luta pela dignidade humana. Aqui, selecionamos alguns de seus poemas, cujas reflexões falam sobre a análise do contexto social e a crítica antirracista.
1. Poeta
Este poema evidencia a relação entre poesia e marginalização social. Carolina Maria de Jesus revela que o amor e o reconhecimento são negados aos pobres, em um Brasil marcado pela desigualdade racial e econômica.
“Poeta
Poeta, em que medita?
Por que vives triste assim?
É que eu a acho bonita
E você não gosta de mim.
Poeta, tua alma é nobre.
És triste, o que te desgosta?
Amo-a, mas sou tão pobre
E dos pobres ninguém gosta.
Poeta, fita o espaço
E deixa de meditar.
É que… eu quero um abraço
E você persiste em negar.
Poeta, está triste eu vejo.
Por que cisma tanto assim?
Queria apenas um beijo,
Não deu, não gosta de mim.
Poeta! Não queixas suas aflições
Aos que vivem em ricas vivendas
Não lhe darão atenções
Sofrimentos, para eles, são lendas”
O poema “Poeta”, de Carolina Maria de Jesus, é uma reflexão sobre rejeição, pobreza e a indiferença da sociedade em relação aos que vivem à margem.
A estrutura do poema é um diálogo entre o poeta e uma interlocutora que não o corresponde. Mas rapidamente o poema se amplia para um lamento mais profundo: não é apenas um amor não correspondido, mas a condição social que define esse afastamento.
No verso “Amo-a, mas sou tão pobre / E dos pobres ninguém gosta”, Carolina sintetiza o preconceito de classe, que desumaniza os marginalizados e os impede de serem vistos como sujeitos de desejo, afeto e pertencimento.
Ao final, o poeta percebe que sua dor não tem espaço na sociedade elitista: “Não queixas suas aflições / Aos que vivem em ricas vivendas / Não lhe darão atenções / Sofrimentos, para eles, são lendas.” Esse fechamento denuncia a indiferença dos ricos em relação ao sofrimento dos pobres, que são vistos como meras abstrações, sem rostos, sem histórias, sem humanidade.
Essa crítica ressoa com o conceito de epistemicídio, termo usado por intelectuais como Sueli Carneiro para descrever como as narrativas das populações negras e periféricas são sistematicamente apagadas ou desconsideradas.
Além disso, o poema dialoga com a solidão da mulher negra e a desvalorização dos afetos dentro das classes populares. O “poeta” do poema pode ser lido como Carolina projetando sua própria experiência: uma escritora que encontrou na poesia um espaço de expressão, mas que ainda assim foi rejeitada tanto no campo literário quanto na vida social.
No Brasil, onde o racismo estrutural e a desigualdade de classe ainda são profundos, “Poeta” continua atual. A obra de Carolina nos lembra que a pobreza não é apenas uma questão de dinheiro, mas de exclusão afetiva, simbólica e política. Ler sua poesia hoje é uma forma de resistência e um convite à transformação social.
Carolina, mulher negra e favelada, enfrentou tanto a miséria material quanto o desprezo simbólico. Sua poesia, no entanto, não é apenas lamento: é denúncia e resistência.
No Brasil, a literatura sempre foi um espaço elitizado, e Carolina rompeu essa barreira ao transformar sua experiência em arte. Sua trajetória nos lembra que a pobreza não é sinônimo de incapacidade, mas uma construção social que restringe oportunidades.

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2. Quadros
Trechos
“Eu disse: o meu sonho é escrever!
Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer…
É ir pro tanque lavar roupa (Jesus, 2019, p. 107).
Saio de casa não deixo nada
Nem um pedacinho de pão,
Deixo minhas roupas molhadas
Não as lavo por não ter sabão (Jesus, 2019, p. 108).
Num país subdesenvolvido
Onde o povo não vai à escola
Por não ser bem esclarecido
O que aprende é pedir esmola (Jesus, 2019, p. 111).
Minha existência é sombria
Vivo tão só neste mundo
Minha amiga é a poesia
Que não me deixa um segundo (Jesus, 2019, p. 116).
Coisa que eu não tenho inveja
É da mulher que é casada
Quando ela pede comida
O marido quer dar pancada (Jesus, 2019, p. 116).”
A poesia de Carolina Maria de Jesus revela, com força e simplicidade, a intersecção entre racismo, pobreza e gênero no Brasil. O primeiro verso já traz um choque: o desejo de escrever, um ato de emancipação intelectual, é imediatamente ridicularizado por um homem branco. O preconceito se impõe como um limite socialmente construído sobre o que mulheres negras podem ou não sonhar.
A estrofe seguinte reflete a realidade material dessa opressão. O trabalho doméstico – representado pelo tanque de lavar roupa – aparece como destino compulsório, enquanto a falta de sabão escancara a precariedade da vida na favela. A pobreza não é apenas uma condição econômica, mas uma estrutura que priva o indivíduo de escolhas.
No terceiro trecho, a crítica à desigualdade educacional emerge. Carolina expõe como a marginalização da população negra e pobre impede o acesso ao conhecimento, reforçando ciclos de exclusão. A consequência dessa negligência estatal é a dependência da esmola, transformada em única estratégia de sobrevivência.
A penúltima estrofe revela um contraponto: se a sociedade a isola, a poesia a acolhe. Aqui, Carolina descreve a poesia como sua única aliada contra a solidão e a invisibilidade. A frase “Minha amiga é a poesia / Que não me deixa um segundo” sugere que, em um mundo hostil, a palavra escrita foi seu refúgio e seu poder.
Para Carolina, a escrita não é apenas expressão, mas uma companhia fiel, um refúgio para sua existência solitária. E, por fim, a última estrofe ironiza a violência doméstica, um destino trágico de muitas mulheres casadas, demonstrando que o matrimônio tradicional não é sinônimo de segurança, mas de submissão e dor.
Essa poesia encapsula um olhar crítico sobre o Brasil que, décadas depois, ainda permanece atual. Mulheres negras seguem lutando para serem reconhecidas além dos papéis subalternos, enfrentando desigualdade social e violência de gênero. O poema não é apenas um retrato do passado, mas um espelho incômodo do presente.
Ser uma escritora negra, mulher e periférica é um ato de resistência. A literatura sempre foi dominada por homens brancos, e Carolina, sem apoio do mercado editorial tradicional, publicou por conta própria. Sua poesia rompe silêncios impostos historicamente às mulheres negras, que foram por séculos vistas apenas como força de trabalho, sem direito à subjetividade.
Este poema dialoga com a teoria da “solidão da mulher negra”, proposta pela socióloga Claudete Alves, que fala da exclusão afetiva e social imposta a essas mulheres. Carolina transforma essa dor em potência, provando que sua voz é essencial na literatura brasileira.

3. A rosa
“Eu sou a flor mais formosa
Disse a rosa
Vaidosa!
Sou a musa do poeta.
Por todos sou contemplada
E adorada.
A rainha predileta
Minhas pétalas aveludadas
São perfumadas
E acariciadas.
Que aroma rescendente:
Para que me serve esta essência,
Se a existência
Não me é concernente…
Quando surgem as rajadas
Sou desfolhada,
Espalhada.
Minha vida é um segundo.
Transitivo é meu viver
De ser…
A flor rainha do mundo” (Jesus, 2019, p. 59).
O poema A Rosa, de Carolina Maria de Jesus, traz uma metáfora sobre vaidade, efemeridade e a condição social da mulher negra. A rosa, personagem central, começa como um símbolo de beleza e adoração, sendo contemplada e acariciada. No entanto, ao longo dos versos, sua fragilidade se revela: apesar de seu perfume e de sua posição de destaque, ela não tem controle sobre sua própria existência.
Essa metáfora pode ser interpretada sob diferentes perspectivas. Em um nível mais universal, o poema dialoga com a transitoriedade da vida e com a ilusão da grandiosidade. A rosa, inicialmente exaltada, logo percebe que sua realeza não a protege da inevitável efemeridade. Quando os ventos chegam, ela é despedaçada sem poder reagir, a beleza e o status são passageiros.
No entanto, ao analisar o contexto da obra de Carolina Maria de Jesus, a rosa também pode ser lida como uma alegoria da mulher negra em uma sociedade que a explora, mas não lhe garante estabilidade ou segurança.
A vaidade da flor é desmontada ao longo do poema: sua essência perfumada não lhe garante autonomia, e, quando o ambiente se torna hostil, ela é descartada, espalhada ao vento. Isso reflete a realidade de muitas mulheres negras que, embora tenham sua força e beleza enaltecidas em discursos superficiais, continuam vulneráveis à precariedade social e à exclusão.
O verso final, “A flor rainha do mundo”, carrega um tom irônico e melancólico. Se, por um lado, reforça a ideia de que a rosa ocupa um lugar de destaque, por outro, nos faz questionar: de que serve esse título se seu destino é ser desfolhada sem resistência? Carolina, com sua escrita direta e lírica, nos convida a refletir sobre a fragilidade das glórias superficiais e sobre o modo como a sociedade descarta aqueles que um dia exaltou.

Reflexões sobre a luta, identidade e resistência
O Brasil tem uma dívida histórica com a população negra, que foi escravizada por mais de 300 anos e depois deixada à própria sorte, sem políticas de inclusão. Até hoje, a educação pública de qualidade não chega a todos, e as estatísticas mostram que negros têm menos acesso ao ensino superior.
Carolina sabia disso por experiência própria. Autodidata, escreveu diários, poemas e romances sem nunca ter tido uma educação formal plena. Sua obra expõe o racismo estrutural, que faz com que a pobreza seja hereditária e a elite continue determinando quem pode ou não sonhar.
Essas reflexões mostram como a poesia de Carolina Maria de Jesus não é apenas um relato pessoal, mas um manifesto contra as injustiças sociais. Sua obra nos convida a refletir sobre um país que ainda nega oportunidades para milhões de pessoas negras e pobres, mas que encontra, na literatura de resistência, um caminho para a transformação.
Carolina Maria de Jesus, com seus poemas, nos dá uma visão crua e sincera da luta contra o racismo e da busca por identidade. Seus versos denunciam a dor da exclusão social e racial, mas também celebram a resistência e a força das pessoas negras.
Ao explorar sua obra, somos levados a refletir sobre as inúmeras Carolinas que ainda enfrentam, todos os dias, a dor do preconceito e da invisibilidade. Seus poemas são um convite à luta contra as estruturas racistas que ainda dominam nossa sociedade, e sua voz, ainda que silenciada muitas vezes, ressoa como um grito de resistência e liberdade.



