Além da pandemia do covid-19, vivemos uma outra: a da chatice desenfreada. Nunca, num só tempo, colecionamos chatos de toda cepa. Estamos envoltos e protegidos pela égide dos patrulheiros da moral, dos bons costumes, das causas relevantes, dos protocolos e assim por diante. Nada contra esses princípios, tudo contra seus fanáticos algozes.
Da noite para o dia, fomos cobrados impiedosamente, como se ao longo do tempo estivéssemos trilhando os caminhos das trevas. A coisa tomou tamanha proporção que até o universo das palavras foi rudemente perseguido e “cancelado”. A vida toda fui gordo (só não o sou agora, por conta de uma cirurgia bariátrica, feita em função da saúde comprometida e não pela estética) e jamais incomodou-me ser chamado de gordo, ao contrário, via com carinho e distinção. Mas agora, tudo mudou, chamar alguém de gordo virou ofensa grave, é preciso trocar por obeso. Se alguém me chamava de obeso , pode ter certeza, criaria comigo uma guerra eterna. Obeso lembra um sujeito doente, gordo lembra alguém vívido, alegre e fanfarrão. Tive um amigo anão, muito querido. Era o nosso mascote, a nossa referência. Nunca o vi brigando por ser chamado de anão. Mas agora, precisamos mudar, tem de ser “verticalmente Incorreto”. Tenho certeza de que chamá-lo assim causaria profunda depressão.
O mundo ficou chato. É evidente que o destrato, a ofensa, o preconceito devem ser combatidos e expurgados do contexto social. Entretanto reprimir o coloquialismo, a expressão cultural ampla, o registro informal é outro crime. A ofensa está na conduta, na ação perversa, na intenção orquestrada de distinguir para a opressão. É preciso ir mais profundamente nesse contexto e não simplesmente patrulhar a palavra como agente de preconceitos.
Nélson Rodrigues foi um mestre do jornalismo, da literatura, do teatro. Certamente, hoje seria fruto do ódio dos arautos das causas humanas. Seria cancelado, perseguido, criminalizado, tomado por sexista, preconceituoso, imoral e coisas do gênero. Imaginem a escalada de ódio em peças e títulos como “Bonitinha, mas ordinária”. O mundo desabaria como uma catástrofe inominável.
Chico Buarque foi cobrado pelo poema “atrás da porta”, acusado de visão machista discriminadora e sexista. O texto de Chico Buarque ajudou no caminho da visão patriarcal e reforçou o machismo cultural inerente da sociedade? É claro que não, ele apenas retratou uma realidade concreta do universo feminino, facilmente distinguível. Como terminar com o machismo preconceituoso? Calando Chico Buarque? Não, evidentemente, não. O que faz extinguir o machismo é a conduta da sociedade, a começar pela família, pela escola, pelas instituições em geral. Chico é apenas um retratista da realidade, jamais o causador da mácula.
Existem pessoas mais chatas que os fanáticos políticos? Sejam elas de direita, esquerda, centro e assim por diante? E os defensores da causa animal? Os soldados das minorias reprimidas? De repente, eles se vestiram de heróis, fossilizaram as suas convicções, impediram o contraditório, impuseram ideais, passaram a viver só disso, como se alimentos fossem. O mais triste é que normalmente eles não vencem. Ao contrário, perdem sempre. Esquecem que a mudança deve existir sim, é justa e necessária, mas ela é sistêmica. É fruto das ações conjuntas, dos esforços coletivos, da educação ampliada e do agregado de princípios. Por isso a diversidade e a sua compreensão são as plataformas que embasam a construção de uma sociedade justa e democrática. As ações conjuntas são complexas porque encontram barreiras no maniqueísmo latente. Ideias não são impostas, são debatidas, discutidas, implantadas com anuência e inteligência. Se assim não for, jamais serão absorvidas. Culpar a palavra como agente de discriminação é desconhecer o alicerce. Os chatos precisam beber um pouco do licor “simancol”. A vida precisa de mais alegria.
Imagem- Revista Seleções – Sanchairat/Stock