Sou urbano, sempre fui. Cresci na cidade grande, onde o cheiro de bosta de vaca era substituído pelo cheiro do óleo diesel. O conceito de mata virgem para mim era o campinho de grama que eu ajudava meus amigos a roçarem, para jogarmos futebol. Sou filho do plástico, da piscina, da televisão, do suco artificial do saquinho, o famoso K-Suco, do tênis, que a gente chamava de Kichute, e tantas outras “maravilhas” do progresso industrial.
O que sempre me chamou a atenção, no entanto, era o som da viola caipira e as letras cobertas de dor e paixão pela natureza do campo. As narrativas sobre as comitivas que levavam o gado mato afora, as tragédias cotidianas do homem do campo, a solidão acolhida pelas estrelas, pelo sol, pela água pura, pelas marcas de uma vida de sofrimento e encanto.
Era uma forma delicada de me fazer valorizar as minhas origens, de entender que nada, absolutamente nada transpirava outra coisa, senão a essência caipira da minha vida, da raiz que me fazia inteiro e sóbrio, num mundo de fantasia, que eu insistia em acreditar como verdadeiro. Sou e sempre fui um caipira metido numa fantasia de “progresso”. Ledo engano.
Hoje, já bem mais velho, pronto para ouvir estrelas, como dizia Olavo Bilac, deparo-me com situações risíveis e desconexas. Entendo a mudança do mundo, dos gostos, das gentes, dos conceitos, das preferências. Estou avesso à verdade unilateral, tomada como princípio e açoite. Vejo e sinto as mudanças. Entendo os seus tentáculos, aceito a sua necessidade.
Entretanto, não posso simplesmente jogar pela janela a seiva da minha existência. Não se negocia raiz. Falo isso porque acompanho pelos noticiários a saga econômica que se travam entre os chamados “cantores sertanejos” modernos. Afinal, quem deu a eles a alcunha de “sertanejos”? De que sertão eles tratam? Que universo cantam?
Situação similar ouvi dia desses. Jogador de futebol chamando o técnico de professor. O que esses indivíduos professam? Chamar os cantores de música popular, cuja temática está longe do cotidiano sertanejo, de sertanejo é surreal. A maioria deles jamais montou num cavalo, nunca trabalhou na lida, não comeu poeira e cuspiu tijolo. São seres urbanos, muitas vezes frustrados pelo fracasso no rock, atados a amores vagabundos, maltratados por aquilo que chamam de “sofrência”.
Onde há sertanejo nisso? Em tese, são canções cujas matrizes originam-se dos dramalhões dos boleros mexicanos, passando pelo country americano, sem qualquer identidade com o campo brasileiro. Se o povo gosta, paga para acompanhar, a discussão é outra. Se esses cantores atraem multidões, cobram e ganham fortunas, ninguém pode ou deve colocar entraves. Faz parte do momento, da emoção que provocam.
O meu lamento, a minha indignação é apropriar-se da expressão “sertanejo” para caracterizar um estilo que está longe de ser sertanejo. Falo isso como ser urbano, repito. Não sinto cheiro de poeira nessas canções, tampouco de bosta de vaca. Sinto cheiro de óleo diesel, de k-suco, rio poluído, solidão e proximidade com suicídio. O sertanejo merece mais respeito.