A Prefeitura de Ribeirão Preto realizou seguidos malabarismos, em decisões atípicas, para contratar, prorrogar e dificultar a substituição da empresa Nota Control, responsável pela gestão do sistema de ISS (Impostos Sobre Serviços) e emissão de Notas Fiscais. Incomuns, as medidas geraram uma verdadeira revolta entre os servidores de carreira da administração e o processo de seleção acabou cancelado pela administração.
O processo em questão tem como objetivo a contratação de empresa especializada para prestação de serviços técnicos relacionados à Tecnologia da Informação para implantação, customização, adaptação e evolução, bem como hospedagem em Data Center do Sistema Informatizado Integrado de Gestão Tributária, com a cessão de código fonte, direito de uso perpétuo e transferência de tecnologia, abrangendo todos os tributos municipais com todas as funcionalidades web. O valor previsto para contratação dos serviços era de R$ 6,7 milhões.
O processo de licitação foi aberto em julho de 2021, quando a Fazenda abriu uma mega-licitação para modernizar os sistemas. Após idas e vindas, com diversos recursos e impugnações do edital, o pregão foi realizado em março de 2022.
A empresa vencedora foi, justamente, a Nota Control, oferecendo R$ 3,9 milhões, valor bem abaixo do previsto inicialmente pela administração. A empresa, contudo, foi reprovada na prova técnica aplicada pelos técnicos da Fazenda: seu sistema atendia a menos de 50% das necessidades da pasta.
A segunda colocada foi a empresa DSF – Desenvolvimento de Sistemas Fiscais, que ofereceu R$ 5,5 milhões, também abaixo do valor inicialmente previsto. Ao contrário da Nota Control, ela foi aprovada na prova técnica, aplicada em maio de 2022, atendendo a 90% das necessidades.
Apesar disso, em decisão que surpreendeu os funcionários de carreira da Fazenda, o secretário Afonso Duarte revogou todo o certame em 1° de agosto.
O processo, entretanto, é todo cercado de decisões incomuns, justificativas estranhas e questionamento por parte de técnicos. Entenda essa história na reportagem abaixo, fruto de apuração conjunta do Farolete e Grupo Thathi de Comunicação.
O CASO
Por ser amplo, o novo sistema englobaria também o atual, fornecido pela Nota Control e contratado emergencialmente por irrisórios R$ 3,8 mil anuais, para a gestão do ISS.
Com isso, a prefeitura não teria mais argumento para manter a Nota Control como a referenciada, na cidade, para a emissão das Notas Fiscais, o que resultaria na perda de clientes.
A pendenga começou logo depois que a Nota Control, empresa que atualmente responde pelo serviço de emissão de notas fiscais no município, e venceu o processo após uma série de suspeitas de irregularidades, foi a primeira colocada no pregão.
Apesar de ter o melhor preço, a empresa foi avaliada pelos técnicos da Secretaria da Fazenda, que reprovaram a empresa por má-qualidade técnica. “A NOTA CONTROL TECNOLOGIA LTDA foi considerada reprovada na Prova de Conceito por não satisfazer os critérios mínimos previstos no Edital do Pregão Presencial nº 86/2021”, afirma documento da Secretaria.
A segunda colocada no processo, DFS DESENVOLVIMENTO DE SISTEMAS FISCAIS LTDA, foi analisada e aprovada, embora com um preço mais cara e assinaria contrato com a prefeitura. O que, efetivamente, não ocorreu, já que o processo de licitação acabou cancelado pelo secretário Afonso Reis Duarte, em decisão datada de 1º de agosto.
“Afonso Reis Duarte, Secretário Municipal da Fazenda, no uso das atribuições que lhe são inerentes, com fulcro no art. 49, caput da Lei nº 8.666/93 e Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, por conveniência e oportunidade, determina a REVOGAÇÃO do presente certame”, afirma o despacho. Houve recurso da DFS e o caso está em análise na prefeitura.
Ele justificou, em despacho obtido pela reportagem, que a Coderp já oferecia serviços mais baratos e que a Nota Control, ao oferecer R$ 3,9 milhões na licitação, promoveu um novo “parâmetro” de valor referencial da licitação, em substituição aos R$ 6,7 milhões inicialmente previstos.
Malabarismo e decisões estranhas
Segundo um servidor ouvido pela reportagem sob condição de anonimato, o sistema apresentado pela Nota Control era incompatível com o que estava em uso pela prefeitura. Com isso, para utilizá-lo, deveriam ser feitos ajustes que, na prática, tornavam inviável a substituição. Já a segunda colocada apresentou um sistema que era mais de 92% compatível com o utilizado pela administração, o que diminuiria os custos envolvidos no desenvolvimento da integração.
“Ninguém entendeu o motivo da revogação. Foi uma coisa que acabou sendo questionada por todo o corpo técnico da Secretaria”, informou o servidor público.
A revolta com o caso foi tão grande entre servidores de carreira da secretaria que três deles enviaram um ofício diretamente ao prefeito Duarte Nogueira (PSDB), reclamando que a revogação é prejudicial ao município, pois irá travar a modernização do sistema e poderá, até, resultar em “paralisação da gestão tributária”. O ofício foi encaminhado ao Chefe do Executivo em 11 de março, em um ofício de três páginas, segundo cópia obtida pela reportagem.
Segundo eles, o atual sistema da Coderp, em relação ao que seria contratado da DSF, é apenas R$ 43 mil mensais mais barato. Além disso, ressaltam os servidores, sistema é obsoleto e não atende as atuais necessidades da administração. “O custo oculto da ferramenta atual é percebido nas perdas originadas nas prescrições de créditos tributários e na enorme dificuldade de integração com outros sistemas. Nossa defasagem cadastral contamina outras ferramentas que também não conseguem ser mais eficientes (…). A não contratação de novo sistema de gestão fiscal (…) vai manter o atual cenário de insuficiência tecnológica”, citaram os servidores a Nogueira, em ofício obtido pela reportagem.
A partir desse momento, o processo passou a ser observado de perto por emissários do prefeito. A decisão de revogar, de acordo com fontes palacianas, partiu diretamente do gabinete do prefeito para evitar questionamentos posteriores sobre o assunto.
Histórico
Não é a primeira vez, entretanto, que decisões estranhas são tomadas quando o assunto é a Nota Control. Conforme divulgado com exclusividade pelo portal do Grupo Thathi, em um processo também marcado por decisões estanhas, como a dispensa de licitação, a empresa foi contratada, em julho de 2020 para fazer a emissão de notas fiscais para empresas que recolhem Imposto Sobre Serviço (ISS) na cidade. O caso foi encarado como licitação emergencial e o contrato segue válido até hoje.
À época, estava em andamento uma licitação ampla, no valor previsto de R$ 2,5 milhões, que englobaria esse serviço e outros. Duas semanas antes da realização do certame, a Nota Control foi contratada por apenas R$ 3,8 mil ao ano. Com isso, a outra licitação foi cancelada.
Até então, o serviço era executado pela empresa Eicon e custava R$ 2,7 milhões anuais. A mágica da Nota Control para uma diferença de 99,99% no valor é que ela não é remunerada pela prefeitura, e sim pelos contribuintes. No contrato anterior, com a Eicon, o sistema de emissão de Notas Fiscais era gratuito para as empresas, custeado pelo poder público. Por isso, o valor do contrato era elevado.
Já a Nota Control fornece à prefeitura apenas o sistema de integração do ISS, por valor ínfimo. Em contrapartida, se tornou a referenciada do poder público para os serviços de emissão de Notas Fiscais. E passou a cobrar por algo que antes era gratuito às empresas. Os planos custam de R$ 7,90 a R$ 49,90 ao mês.
A Secretaria da Fazenda divulga apenas o serviço da Nota Control em sua página oficial, dando a entender que é a única apta para a emissão das Notas Fiscais, embora outras empresas também prestem o serviço. A administração e a empresa foram questionadas sobre o valor do lucro aferido com a prestação de serviços, mas não se pronunciaram. Fontes ouvidas pela reportagem, entretanto, indicaram que o montante pode ultrapassar os R$ 5 milhões ao ano.
Técnicos da Fazenda ouvidos pela reportagem afirmam que a contratação da Nota Control, com a substituição do modelo antigo (prefeitura custeando o sistema de emissão das Notas Fiscais) pelo novo gerou economia aos cofres públicos e foi positivo.
Entretanto, o que era emergencial em julho de 2020 permanecerá, pelo menos, até julho de 2023: os contratos com a Nota Control foram sucessivamente renovados. A última prorrogação ocorreu em 4 de agosto deste ano.
A prefeitura não abriu nenhuma nova licitação para atrair empresas que pudessem oferecer, eventualmente, serviços melhores a preços mais baratos para as empresas, em troca de se tornarem a referenciadas pelo poder público.
Histórico
Fundada em 1997 em Campo Grande (MS), a Nota Control tem expandido suas atividades junto a prefeituras em todo o país, oferecendo soluções digitais para gestão de tributos. Em sua trajetória, a empresa apresenta uma série de dados que inspiram preocupação: já foi investigada em ações civis públicas que correram em Cuiabá, Andradina, Dourados e Jaguariúna, entre outros municípios, sendo que um de seus sócios, Nerone Maiolino Junior, chegou a ser condenado a cinco anos de prisão pela participação em um esquema de corrupção que consistia em fraudes a licitações e corrupção ativa na prefeitura de Dourados.
Nesse caso de Dourados, Junior foi condenado por corrupção devido a um mensalinho pago a agentes políticos. O caso foi descoberto em 2010 pela Operação Urugano, uma espécie de Operação Sevandija do município. O pagamento da propina foi admitido por executivos da empresa, que também foram flagrados em interceptações telefônicas.
“A primeira negociação nossa foi R$ 15 mil. Aí, passamos para… por conta da necessidade… aquela coisa toda… aquela conversa toda que você sabe, passamos para R$ 25 mil reais de retorno”, disse Júnior, em conversa cifrada ao telefone com um servidor da prefeitura de Dourados.
Interrogado judicialmente, Nerone confirmou que pagava de R$ 15 mil a R$ 25 mil mensais para o então prefeito de Dourados, Ari Artuzi.
Em sua sentença, o juiz Rubens Witzel Filho afirmou que “os pagamentos mensais tinham objetivo de corromper agentes públicos, a fim de manter vigente o contrato celebrado entre a Nota Control e a Prefeitura” e condenou Nerone a cinco anos de prisão em 2016.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 2018, fixou a nova pena em 3 anos, mas considerou que a punição já estava prescrita.
Problemas tributários
Uma demanda antiga do corpo técnico da Fazenda é a modernização do sistema tributário, com novas tecnologias para a gestão de arrecadação e cobranças de tributos como IPTU, ITBI e ISS.
O sistema atual é fatiado em diversos programas, alguns deles produzidos na década de 1970 e gerenciados principalmente pela Coderp, empresa pública que está em processo de extinção. O sistema é tão obsoleto que obriga os servidores a realizarem consultas e correções manuais.
Por exemplo: quem tem parte do terreno em uma APP (Área de Proteção Permanente) possui desconto no IPTU e não pode ser autuado por deixar de realizar roçada. Entretanto, um funcionário precisa analisar caso a caso para aplicar o desconto e anular eventuais multas, pois o sistema não faz isso automaticamente.
Esse atraso gera perdas reais ao município: cobranças de IPTU chegam a prescrever porque o sistema atual não avisa, automaticamente, os prazos de prescrição.
Com isso, funcionários ficam sobrecarregados, com tarefas adicionais e acumuladas.
Outro lado
Em nota, a Secretaria da Fazenda informou que a licitação revogada “se encontra em fase de recurso, conforme previsto em todo processo licitatório”, e que “seguirá os trâmites legais e aguarda conclusão do mesmo”.
A assessoria de imprensa da prefeitura não se manifestou sobre o ofício enviado pelos servidores ao prefeito Nogueira.
O secretário Afonso Duarte foi procurado pela reportagem e justificou que o processo licitatório revogado estava em fase de recurso, e por isso não poderia emitir posicionamento que configurasse juízo de valor.
Já a Nota Control foi procurada, pela reportagem, mas também não se manifestou sobre a reprova em prova técnica nem sobre o valor do lucro que aferiu com o contrato que tem com a prefeitura de Ribeirão.
*Apuração conjunta entre os jornalistas Eduardo Schiavoni, gerente de jornalismo do Grupo Thathi, e Cristiano Pavini, editor-chefe do Portal Farolete