Uma operação realizada na cidade de Ribeirão Preto (SP) no dia 24 de outubro, com a participação do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério do Trabalho e Previdência – Gerência Regional do Trabalho de Ribeirão Preto e da Polícia Militar, resultou no resgate de uma empregada doméstica de condições análogas à escravidão, uma idosa de 82 anos. Nessa sexta-feira, 01 de dezembro, uma decisão judicial obtida pelo MPT determinou o bloqueio de bens do casal acusado de mantê-la trabalhando sem salário e sem folgas pelo período de 27 anos, no valor de R$ 815.300,00. A transferência de um veículo pertencente aos réus já foi alvo do bloqueio.
O montante será transferido para a trabalhadora, com o objetivo de reparar uma vida inteira de submissão e abusos praticados pelos empregadores. Segundo provas carreadas no inquérito civil, a empregado doméstica, negra e analfabeta, passou quase três décadas “sonhando em ter uma casinha”, na esperança de que a empregadora estivesse juntando dinheiro para que ela realizasse o desejo de longa data. Contudo, as provas apontam para o fato de que os patrões a enganaram durante todo o período, deixando de pagar salários, com a justificativa de que estariam “guardando dinheiro pra ela”.
O MPT recebeu denúncia anônima noticiando que no endereço indicado trabalhava a empregada doméstica, em condições precárias de trabalho, havendo suspeitas de condições análogas à de escravo. A diligência foi conduzida pelo procurador Henrique Correia e pelos auditores fiscais do trabalho Sandra Ferreira Gonçalves, Jamile Freitas Virginio e Cláudio Rogério Lima Bastos, além de efetivo da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
A trabalhadora prestava serviços ao casal todos os dias, sem receber salário. Em depoimento, disse que “não conhecia dinheiro”. A vítima contou que os patrões enviavam cerca de R$ 100,00 todos os meses ao seu irmão, que é residente na cidade de Jardinópolis. Beneficiária do Benefício Previdenciário Continuado (BCP), por conta da idade avançada, a empregada doméstica não tinha sequer acesso ao seu cartão de saque, que ficava de posse da patroa. Não existem recibos de pagamentos de direitos trabalhistas ou conta corrente que fosse usada para o pagamento de salário.
“A trabalhadora fazia referência à empregadora como aquela que provia tudo o que ela precisava. Na verdade, a empregada possuía um benefício assistencial, e a empregadora fazia o gerenciamento daquele recurso e adquiria os gêneros de primeira necessidade para a trabalhadora com esses recursos que eram passados pelo governo. Salário nunca recebeu. Ela tinha o sonho grande de ter uma casa em recompensa por todos esses anos de trabalho, e ela expressava isso. Ela tinha essa crença muito forte de que receberia essa casa da empregadora”, explica a auditora fiscal do trabalho, Jamile Freitas Virginio.
“É importante frisar que a vítima, como a própria afirmou em seu depoimento, começou a trabalhar como doméstica ainda criança, na casa de outra família, sendo “cedida” para os atuais empregadores após o falecimento da antiga empregadora. Sem estudos, sem amigos ou relacionamentos amorosos, se submeteu a tal situação de trabalho por ser extremamente vulnerável. Mulher, negra, de origem humilde, analfabeta, ela é mais um exemplo de interseccionalidade, uma vez que evidencia a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade, as quais permitiram que tantos anos se passassem sem que a presente situação de exploração fosse descoberta pela comunidade que rodeava a família”, lamenta o procurador Henrique Correia.
Além da ausência de remuneração, não havia controle de ponto, nem folgas semanais, em troca do que lhe era dado pelos empregadores, sem qualquer controle do quanto recebia, com qual periodicidade, ou se recebia efetivamente algo.
“Para a caracterização do trabalho análogo ao de escravo, temos indicadores que se repetem, e não foi diferente nesse caso. Tínhamos um abuso de uma situação de vulnerabilidade, uma retenção salarial, uma negação sistemática de todos os direitos trabalhistas. A vítima trabalhava há quase 3 décadas sem nenhum recolhimento previdenciário, sem registro na carteira de trabalho, sem garantia de recebimento de salário, de férias, de 13º salário. Mesmo o descanso semanal não era respeitado como deveria, as férias não eram concedidas como deveriam. Havia uma negação da pessoa como um sujeito de direitos, como se ela não tivesse direito a ter direitos. Essa é a principal característica do trabalho escravo contemporâneo; quando você nega ao trabalhador a condição de sujeito de diretos, nega a sua dignidade, o trata de maneira desigual perante a lei porque não o entende como digno de ter aqueles direitos respeitados”, observa Jamile.
Durante a inspeção, a empregadora dirigiu-se à auditora fiscal, por duas ocasiões, com frases agressivas, como “minha vontade era de te esganar”, e “eu queria te bater, se eu pudesse”. Ela tentou frustrar o processo fiscal, primeiramente tentando fugir da residência, levando consigo a trabalhadora, tendo sido reconduzida ao local pelos policiais militares, depois, evitando que a trabalhadora fosse identificada, tentando impedir a entrega de documentos pessoais.
Segundo o relatório de diligência, em diversos momentos da inspeção, a vítima concordava com a cabeça com as informações prestadas pela patroa, adentrando na casa quando lhe era ordenado pela empregadora. A subordinação e submissão atípica talvez se justificasse pela promessa da realização de um sonho: um dia “ganhar uma casinha” de sua empregadora, a qual, segundo a trabalhadora, “guardava seu dinheiro para ela”. A trabalhadora afirmou em seu depoimento que só iria parar de trabalhar quando conseguisse comprar sua casinha. Tal fato é reafirmado pelo depoimento das atendentes do posto próximo à residência, que disseram às autoridades que a “vozinha” já havia afirmado, quando questionada do motivo de trabalhar na idade avançada que possuía, que estava em busca de sua casinha, que sua patroa lhe havia prometido.
“Via de regra, em todos os casos em que há resgate de trabalho escravo doméstico, você está perante uma pessoa que começou a trabalhar muito cedo, ainda criança, e aquela é a realidade que ela conhece. Trabalhar dia e noite em prol daquela família sem nenhum reconhecimento de direitos. Essa relação acaba se misturando com os sentimentos e cria-se ali uma relação de afeto constituída com base na desigualdade, em que um parece ser quem provê tudo ao outro, que é necessitado, quando na verdade, existe uma prestação de serviços que deveria ser remunerada de maneira correta”, afirma a auditora fiscal do trabalho Jamile Freitas Virginio.
O procurador do MPT reforça que, no caso em questão, não há dúvidas sobre a existência de vínculo de emprego entre a vítima e os empregadores, e que as graves irregularidades apontam para a existência de trabalho análogo ao de escravo. “A situação narrada é extremamente grave e configura crime de redução à condição análoga à de escravo, nas modalidades “trabalho forçado” ou “trabalho em condições degradantes”, sendo que, em razão da grande vulnerabilidade da vítima, qualquer anuência que esta possa apresentar à condição na qual se encontra inserida é nula em razão da forte subordinação jurídica, social e econômica na qual a vítima está inserida. Uma trabalhadora, analfabeta, com pouca ou nenhuma instrução ou vivência de mundo, a qual foi colocada em situação de exploração ainda criança. Os fatos apontam para a existência de uma prestação de serviços de forma precária, de extrema vulnerabilidade da trabalhadora, sem pagamento de verbas trabalhistas, ou qualquer respeito a direitos trabalhistas, perpetrada por anos”, explica o procurador.
A partir do resgate por condições análogas à escravidão pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho, a trabalhadora tem direito ao seguro-desemprego e às verbas rescisórias. Foi feito o encaminhamento da vítima à Defensoria Pública da União (DPU), para que as questões previdenciárias sejam acertadas a contento. Os empregadores podem ser incluídos na chamada “lista suja do trabalho escravo”.
“A trabalhadora estava a serviço nesse estabelecimento doméstico há 27 anos, e isso é de uma particularidade muito grande. Não que um trabalhador que tenha sido submetido a condições análogas a de escravo por menos tempo tenha tido uma chaga menor, às vezes é tão grande quanto, mas ela não é tão duradoura quanto, e o efeito disso é fazer com que a pessoa acredite verdadeiramente que aquilo é tudo o que ela merece por todos os seus anos de trabalho: viver no mesmo quarto, sem receber remuneração, com o sonho de um dia ter uma casa própria para morar, e isso aos 82 anos de idade. Pensa-se que o trabalho escravo é algo que acontece nos rincões isolados do país, mas no estado mais rico da nação, isso também acontece, e dentro das nossas casas. Muitas vezes, sob olhares omissos e contemplativos, que concordam com essa “normalidade” do trabalho escravo doméstico, no qual as domésticas não têm os seus direitos minimamente respeitados. Penso que esse caso é paradigmático, pois chama a atenção para o fato de que, em uma das cidades mais ricas do interior de São Paulo, uma situação dessa possa acontecer, dentro da casa de uma família com uma situação econômica muito boa. É algo que nos faz refletir sobre quais são os valores sociais que estamos cultivando dentro das nossas casas”, finaliza a auditora fiscal.
Fonte e texto: Ministério Público do Trabalho