Ninguém vem vão

Certa vez li uma frase, daquelas que vagam soltas e que a gente nem sabe quem escreveu, mas que traduzem um impacto intrigante na nossa vida, a ponto de levarmos à categoria da filosofia cotidiana que nos incomoda: “as pessoas vão e vem, mas ninguém vem em vão”.

O sentido dessa frase toma vida cada vez que perdemos alguém importante. Quando nos ensinam a viver, não nos ensinam a perder. A perda é um tabu proibido, quase sempre distanciado da realidade. Ledo engano. Perdemos muito mais do que imaginamos, no entanto somos treinados a ganhar. Somos feitos para a premiação, nunca para a reprimenda.

A nós, desfilam um rosário de desculpas, que inibem as culpas e promovem o consolo, como troféu inexorável. Quando a mãe perde o filho, ou vice-versa, há sempre o apanágio do reencontro num plano futuro, num tempo aleatório, num céu de borboletas. O fel da dúvida é a otimização da existência. Ninguém vem em vão.

Acabo de perder mais um tio. O tempo vai passando e minhas raízes são cortadas impiedosamente. O espelho que me reflete não revela a figura que imagino. Quando as lembranças sobrepujam a esperança é tempo de se entender e se descobrir como personagem, nesse romance abstrato chamado vida.

Afinal, quem nos constrói? Que protagonismos exercem as pessoas que nos alimentam de força e motivo? Qual o sentido da perpetuidade íntima? Quem morre? Quem vive? Meu tio foi uma chuva fina, constante e nutritiva no solo da minha existência. Muito mais do que um homem, um farol. Muito mais do que um amigo, um sentido. Muito mais do que um tio, um mapa. Ninguém vem em vão.

Sinto que o peso do tempo é a constatação do silêncio oriundo do vazio. Poucas coisas, de fato, assumem a importância que damos a elas. Fernando Pessoa, num de seus poemas disse: “o que sou hoje é estar sobrevivente a mim mesmo, como um fósforo frio”.

O que me resta é colecionar memórias. Delicadamente guardar os risos, as festas, os ritos e as faces dos momentos. Ser feliz é um exercício de instantes. Há sempre abismo entre o hoje e amanhã. Não cabe disfarce, não cabem os saltos. Ninguém vem em vão.

Quando eu me for, talvez aprenda a aprender. Quem sabe? Como aluno bem comportado, mas preguiçoso,  assisto fascinado à aula do viver. Absorto, intrigante e silencioso. Nem sempre faço em casa o dever imposto. Colo descaradamente na prova. Não estudo. Não aceito os conceitos, mas também não questiono. Volto a Fernando Pessoa: “Atento ao que sou e vejo, torno-me eles e não eu.” Ninguém vem em vão.

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