Num dia normal de aula, estudantes de escolas municipais e estaduais do interior de São Paulo são surpreendidos ao descobrir que a atividade do dia é uma peça de teatro. No palco, três mulheres de vestido branco surgem cantando e brincando, enquanto um músico entoa uma cantiga suave no violão. Logo, de forma lúdica e sensível, assuntos como violência sexual, física e psicológica contra crianças são abordados.
Alguns alunos se identificam e choram. Outros se incomodam e saem correndo em lágrimas. Professores notam, aproximam-se e perguntam se desejam ir para um lugar mais reservado. Os que aceitam, são convidados a conversar com a juíza Hertha Helena Rollemberg Padilha de Oliveira, 57, que fica na escola esperando, com outros voluntários, como procuradoras de Justiça e do Estado, para ajudar.
A ação faz parte do projeto Eu Tenho Voz, com apoio do Ipam (Instituto Paulista de Magistrados), que por meio da arte busca incentivar jovens a denunciarem caso estejam sendo ameaçados ou sofrendo algum tipo de agressão.
“O objetivo não era apenas conscientizar, mas também encorajar as crianças a quebrarem o silêncio. O projeto se mostrou importante na prevenção e no combate ao abuso sexual infantil. Empodera meninos e meninas, além de promover um ambiente de confiança, a escola, para que eles denunciem a violência”, afirmou Hertha, que é funcionária pública há 33 anos e atua como voluntária na ação.
Desde que o projeto foi criado, em 2016, as escolas receberam 620 denúncias de agressão contra crianças e adolescentes, como abuso físico, psicológico, bullying, violência doméstica, relatos de sentimentos negativos e depressivos, como suicídio, entre outros. Desse total, 226 foram de abuso sexual.
Por isso, o ponto de início é a peça “Marcas da Infância”, da Cia. Narrar Histórias Teatralizadas, que retrata três situações de violência baseadas em fatos reais: da menina que apanha da mãe, da outra que é violentada pelo próprio pai e do garoto abusado pelo padrasto.
Pais e alunos não são avisados que haverá uma peça na escola, nem sobre o tema. A surpresa é essencial para alcançar o máximo de crianças, segundo a servidora pública Patrícia Torres, 39, atriz, arte educadora e produtora cultural que desenvolveu a peça usada desde o início do projeto em escolas de cidades como São Paulo, Jundiaí e São José do Rio Preto.
“Muitas vítimas não compareceriam se soubessem antecipadamente ou poderiam ser impedidas de ir. As apresentações tiveram um impacto significativo, revelando que as crianças se identificavam com a mensagem e a abordagem lúdicas. A arte se mostrou ferramenta poderosa para que elas expressassem suas dores e experiências de abuso.”
Segundo a juíza, “a intenção é criar uma conscientização sobre a importância de proteger os direitos das crianças e prevenir o abuso sexual desde cedo. Não é um assunto fácil de se abordar, é impactante, mas necessário. A peça tem um final mais positivo para dar confiança às crianças de buscar ajuda”.
As denúncias começaram a surgir imediatamente após as apresentações, segundo a juíza, e alguns alunos procuravam os professores semanas depois. “Surgiu a necessidade de oferecer um acompanhamento adequado e de capacitar os professores.”
No dia da apresentação, uma rede de apoio se mobiliza na escola para auxiliar na escuta das vítimas. Reuniões são realizadas com a equipe gestora e a rede para analisar cada caso.
Essa abordagem permite lidar com diferentes tipos de violência de forma adequada, segundo Hertha, que lembra que a maior parte dos abusos é cometido dentro de casa por familiares ou conhecidos.
Além da peça, os alunos assistem a uma palestra dela e recebem uma cartilha que explica como identificar um abusador e a quem recorrer em caso de perigo.
“As crianças precisam saber que confiamos no que elas dizem. Mas quando lhes perguntamos em quem elas acham que vamos acreditar, elas sempre respondem: ‘nos adultos’. Por isso é essencial mostrar que elas serão ouvidas.”
Em Jundiaí, interior de São Paulo, além do teatro, há acompanhamento contínuo com psicólogos, atividades esportivas e culturais. O objetivo é acompanhar as crianças desde a revelação da violência até que ela esteja pronta para seguir em frente.
Para romper o ciclo de violência, o projeto se estende aos pais para que eles compreendam a importância do tema e reflitam sobre sua própria experiência, afirmou Vastí Ferrari Marques, 59, gestora de educação de Jundiaí
“O envolvimento de diversos órgãos torna o projeto uma política pública essencial para a cidade. No entanto, os resultados concretos levam tempo devido à complexidade das questões envolvidas. Isso mostra que a sociedade precisa trabalhar em conjunto para proteger as crianças.”
A abordagem lúdica da peça cria um ambiente em que as crianças se sentem à vontade para se abrir sobre seus traumas, o que pode ser uma etapa crucial no processo de cura, de acordo com Railda Galbiati, 57, psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da Vara da Infância e Juventude de São José do Rio Preto, no interior.
Ela contou que o projeto enfrentou questionamentos de pais mais resistentes, preocupados com o impacto emocional da peça em seus filhos. Railda ressaltou que o espetáculo não traumatiza as crianças.
“A abordagem lúdica permite que as crianças se identifiquem com as situações retratadas e, ao mesmo tempo, compreendam que há pessoas dispostas a ajudá-las”, afirmou a psicóloga.
Dentre as denúncias, 207 foram encaminhadas ao Ministério Público e tramitam em segredo de Justiça. Vinte e cinco casos ficaram com o Conselho Tutelar, enquanto 192 foram resolvidos na escola.
Outras 44 denúncias foram enviadas à rede de apoio do município. Dessas, nove crianças foram para abrigos ou delegacias (e posteriormente para os órgãos competentes) e 36 casos foram monitorados e orientados pelo Centro de Referência às Vítimas de Violência.
Para denunciar casos de violência, ligue para o Disque 100. Também é possível denunciar pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil ou pelo número de WhatsApp (61) 99656-5008.
TATIANA CAVALCANTI / Folhapress