Nasci um mês depois dela. Se em Santo Amaro, na Bahia de todos os santos, os anjos acolheram com festa a sexta filha de dona Canô…em Araçatuba, interior de São Paulo, um querubim desgarrado acompanhou dona Rosa na chegada do décimo e último filho. Imagino que para cada um entregaram uma estrela e profetizaram que a música, ferramenta dos sensíveis, estaria sempre em seus caminhos. Longe deste simples mortal qualquer comparação, são meras circunstâncias de vida. Cada qual à sua maneira, foi agraciado pelo poder transformador da música. Ser radialista me deu um norte; frequentar profissionalmente uma redação de jornal me ajudou a entender melhor o caos político em que o mundo vive hoje.
Para Maria Bethânia Viana Teles Veloso (tema com o qual estreio neste espaço de ilustres colunistas) os deuses entregaram ouvidos apuradíssimos para a música de qualidade, uma voz única, imensa e ao mesmo tempo um canto doce – que Vinícius definiu como livre, puro, não de uma pureza casta e desumana, mas o encontro do céu com a terra, um casamento do mundo com o infinito. Talento pessoal e sensibilidade, inclusive, para entender as coisas muito além dos batuques do Olodum.
Àquela altura já devia sentir-se capaz de tudo, de ser uma doce bárbara e juntar-se aos seus. Por outro lado, a mim, por acaso, abriram as portas do Rádio, este fenômeno de comunicação, cuja paixão me arrebatou e mudou minha vida quase que ao mesmo tempo em que a baiana dava seus primeiros passos em 1965, substituindo a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião, do Teatro de Arena, dirigido por Augusto Boal, no Rio de Janeiro. As trombetas soaram anunciando os novos tempos.
Mais tarde, eu a vi em plena ação declamando os versos de Fernando Pessoa na sua Rosa dos Ventos. Conexão imediata com aquela força estranha que explodia no ar e o olhar embevecido diante da menina dos olhos de Oyá. Respiração, técnica e dicção perfeitas, postura de quem sempre soube o que fazer no palco. Domínio absoluto do palco, a voz direta no coração da plateia, como uma flecha certeira.
Ao mesmo tempo, me fez prisioneiro, vida afora, do canto doce da abelha rainha.
As interpretações das palavras do bardo português colaram-se em definitivo nos meus ouvidos sedentos de poesia. Para esta minha tarefa bendita, depois juntaram-se outros tantos poetas impulsionando ao que chamo meu ofício de dizer, no qual tudo se mistura na hora de cavar a direta claridade do céu e agarrar o sol com a mão. Talvez eu desejasse ser o menino que carregava água na peneira, fascinado que era pelas palavras, na descrição elegante do poeta da incompletude, Manoel de Barros.
Pela grande contribuição à música brasileira, Maria Bethânia recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia. Para compreender um pouco mais a trajetória desta guerreira de pés descalços, melhor atentar aos conselhos do irmão Caetano que de pronto descarta quem não rezou a novena de Dona Canô / quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor / Quem não amou a elegância sutil de Bobô . Afinal, diz ele, quem não é recôncavo nem pode ser reconvexo. De outra forma, não resta outro caminho, senão retornar e enfrentar o dia a dia e reaprender a sonhar.