BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A PEC (proposta de emenda à Constituição) que facilita a privatização de áreas da União no litoral, hoje conhecida como ‘PEC das Praias’, foi duramente combatida em 2022 por membros do governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL), pai do atual relator, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Uma manifestação técnica da SPU (Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União), ligada ao Ministério da Economia de Paulo Guedes, alertou que a aprovação do texto poderia representar a “maior transferência de patrimônio público para o privado que se tem notícia na história”.
Na época da votação na Câmara, em fevereiro de 2022, a liderança do governo na Casa orientou contra a proposta na votação em primeiro turno. Técnicos de diferentes ministérios de Bolsonaro atuaram nos bastidores na tentativa de barrar o texto.
Já o PL, sigla do ex-presidente, orientou a favor da PEC, que foi aprovada por 377 votos a 93 –uma margem ampla em relação aos 308 deputados necessários para alterar a Constituição.
Em 2023, o texto ganhou dois pareceres favoráveis do senador Flávio Bolsonaro, entusiasta da proposta, mas não chegou a ser submetido à votação. O tema voltou a ganhar força após a realização de uma audiência pública no último dia 27 de maio.
Procurado pela reportagem nesta terça-feira (4), Flávio disse via assessoria de imprensa que o governo Bolsonaro nunca trabalhou contra a PEC e que a relatoria, para a qual ele foi designado ainda em 2022, foi uma “indicação” de seu pai, na época ainda presidente da República.
A reportagem então questionou a assessoria sobre os alertas da SPU e as críticas públicas feitas por membros do governo à época, mas não houve resposta.
Uma dessas críticas foi feita pelo então secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord. Favorável a privatizações num sentido mais geral, ele disse em entrevista ao jornal O Globo que a “transferência forçada” dos imóveis não era correta e poderia causar prejuízos à União.
A PEC permite à União realizar a transferência onerosa de terrenos de marinha em áreas urbanas para estados e municípios ou para proprietários privados. O termo “onerosa” significa que os ocupantes precisam pagar pela aquisição, mas o texto é vago e, na avaliação de técnicos, abre brechas para um calote.
Não há previsão de sanções ou condutas em caso de não pagamento –em outras palavras, a cobrança dos valores poderia enfrentar questionamentos jurídicos.
A proposta ainda permite a cessão de áreas a ocupantes que ainda não estão inscritos no cadastro mantido pela SPU. Para os técnicos, esse trecho abre brecha para a prática de grilagem -quando há ocupação irregular de terras públicas por meio de uso de escrituras falsas.
O risco é surgirem grandes quantidades de escrituras reivindicando direitos sobre terrenos que hoje são da União.
“Atualmente, os terrenos de marinha localizados em área urbana representam cerca de 80% da carteira dominial imobiliária contabilizada pela Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, correspondendo a um valor patrimonial de cerca [de] R$ 157 bilhões. No entanto, somente encontram-se demarcados cerca de 20% dos terrenos de marinha (aproximadamente 4.625 km), ou seja, parcela significativa desses imóveis (em torno de 15.261 km), ainda não se encontram devidamente demarcados”, disse a manifestação de 2022 da SPU.
“No caso de eventual transferência direta desse patrimônio da União na forma proposta, […] haveria a interrupção do processo demarcatório, e consequentemente a transferência dos imóveis ainda não demarcados para domínio do particular, cujo valor estimado ultrapassa 1 trilhão de reais, ou seja, a maior transferência de patrimônio público para o privado que se tem notícia na história”, acrescentou o documento.
O ex-presidente foi, em sua gestão, um entusiasta de mudanças em regras para criar uma espécie de “Cancún brasileira” na região de Angra dos Reis (RJ) –onde se situam diversas áreas de marinha potencialmente alcançadas pela PEC.
Além disso, a votação na Câmara se deu no mesmo mês em que os deputados aprovaram a liberação dos jogos de azar. Defensores da liberação têm a expectativa de turbinar essa atividade, sobretudo em cassinos ou resorts.
Agora, a chamada ‘PEC das Praias’ ressurge no Senado no momento em que a Casa também pode se debruçar sobre o projeto de lei que trata dos jogos de azar.
Em 2022, os técnicos do governo Bolsonaro ressaltaram que conglomerados financeiros e empresas de todos os setores, inclusive multinacionais, seriam beneficiados pela PEC em detrimento de inúmeros contribuintes que poderiam postular as áreas. A renúncia poderia chegar a R$ 3,2 trilhões em ativos.
“Por todo o exposto, entendemos que a PEC não deva prosseguir e prosperar, notadamente considerando a sua potencialidade gerar impactos negativos tanto para a União quanto para a população brasileira, prejudicando a gestão do patrimônio público da União, que pertence a todos os cidadãos e não pode ser objeto de benesse a um pequeno contingente da população em detrimento dos demais”, disse a manifestação.
O próprio setor privado tem resistências à medida.
A gerente técnica da ATP (Associação de Terminais Portuários Privados), Ana Paula Gadotti, disse na audiência pública da semana passada que a compra obrigatória de 17% a 100% dos imóveis, a depender do caso, pode não interessar às empresas.
“A PEC não permite a recusa da transferência. Ela prevê uma transferência onerosa e obrigatória. Nossos terminais serão obrigados, do dia para a noite, a adquirir a parte, o domínio útil do terreno de marinha. Alguns deles podem até ser favoráveis a isso e podem ver nisso uma vantagem, mas, em consulta aos nossos associados, a grande maioria não é favorável”, disse.
“Esse assunto foi levado aos acionistas, aos donos das empresas, e eles veem isso como um impacto financeiro muito grande que eles não podem nem aquilatar. Isso gera uma insegurança muito grande para o acionista, o que pode impactar o negócio”, acrescentou Gadotti.
Empresas como a Vale e a Arcelor Mittal estão entre as que possuem terminais instalados em grandes áreas classificadas como terrenos de marinha.
Após a repercussão negativa da PEC, Flávio Bolsonaro relatou a parlamentares que ficou assustado com as reações e deve alterar pontos do relatório para afirmar que as praias não serão privatizadas.
Na sexta-feira (31), diante do embate entre a atriz Luana Piovani e o jogador Neymar, o senador fez uma transmissão ao vivo pelas redes sociais sobre a proposta e disse que essa era “mais uma fake news gigantesca da esquerda”.
Nesta segunda (3), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que haverá “amplo debate” sobre o assunto. “O que eu digo como presidente do Senado é que nós vamos ter toda a cautela com um tema dessa natureza”, afirmou.
IDIANA TOMAZELLI E THAÍSA OLIVEIRA / Folhapress