“A gente usa duas calças para dormir”: estupro, violência e medo acompanham a rotina de uma pessoa em situação de rua

Movimento apartidário luta pelo direito dos cidadãos em situação de rua, pela inclusão social e políticas públicas em todo o país

"A gente vai usar o crack e o álcool para não morrer de hipotermia” | Foto: Melo de Carvalho

Laura Dias, secretária Nacional do MNLDPSR e ex-moradora de rua. Assim se apresenta a mulher de cabelo curto enrolado e pele parda ao mesmo em que mostra com orgulho a estampa da camiseta do movimento que representa. Foram duas décadas na rua.

Seis anos após superar a condição em que vivia sob passos diários na Baixada, Laura hoje representa, em tom nacional, o Movimento apartidário que luta pelo direito dos cidadãos em situação de rua, pela inclusão social e políticas públicas em todo o país.

À época, em decorrência do agravo psicológico, Laura encontrou abrigo na rua. Dia após dia, durante 20 anos de sobrevivência, fez o uso de crack e encarou a violência tal como Conor McGregor em ringue pelo cinturão do UFC, em 2015.

“Se para o homem é matar um leão por dia, para a mulher é matar dois. A gente na rua, como mulher, precisa escolher o nosso estuprador. A gente não tem como se defender. Ou você escolhe, ou fica com um companheiro que você nem gosta, que é uma proteção”, entoa Dias.

Contínua no argumento, Laura explica. “A gente escolhe um lugar seguro para dormir e pode acordar sendo estuprada. Podemos ser estupradas pela própria Guarda, pelos policiais. A gente usa duas calças para dormir e acordar quando eles estiverem tirando a primeira”.

A droga e o álcool fazem morada nas esquinas e abraçam aqueles que caminham em trajeto sem rumo. “Não é fácil sobreviver na rua. A gente vai usar o crack e o álcool para não morrer de hipotermia”. A causa morte em questão acontece em decorrência da exposição prolongada do corpo humano ao frio. 10°C são previstos para a madrugada (30) e (31). Hoje (29), os termômetros marcaram 12°C.

Memórias. Laura lembrou do passado e descreveu as dificuldades do retorno à vida comum. Aponta ainda a importância da rede de apoio em família. “Antes de entrar nessa situação, eu era uma mulher zelosa, minha casa era impecável. Depois que a gente está nessa situação, para voltar ao convívio em uma casa, a gente perde o tato de arrumar a cama, a casa, limpar o fogão. Então precisa ter um preparo, acompanhamento. É psicológico, tem coisa que não sai da gente”, diz.

Ainda sobre a família, Laura descreve o carinho com parentes e reflete sobre a falta dos parentes. “Reatei o laço. Eu não tenho casa, mas moro com minha mãe, minha filha, minha neta e isso me ajuda muito. E quem não tem (a rede de acompanhamento)?”.

“O que leva a gente para a rua é o desemprego, a quebra da família, condições psicológicas. Quem está na rua é gente. Muitas vezes, para sair da rua, a gente só precisa de um diálogo, de uma escuta, uma mão estendida”, conclui.

Para Edvaldo Gonçalves, coordenador nacional do Movimento Nacional de Luta em Defesa da Pop. em Situação de Rua, a quebra do laço familiar e o desemprego são os argumentos principais para que a condição em questão se estabeleça na vida de um homem, como este descreve.

O senso comum em ignorância julga o uso das substâncias como o estopim para o início de uma vida na rua. “O álcool e a droga são consequências. A rua é uma máquina de trazer doenças, principalmente psicológica”, diz Gonçalves, que viveu a condição por 32 anos.

Moradia é o pilar do ser-humano. Sem moradia, não existe saúde, trabalho e lazer, cultura, educação. Políticas públicas. Garantir os direitos básicos das pessoas em situação de rua é o objetivo da Lei 14.821, sancionada pelo presidente Lula e publicada em 17 de janeiro no Diário Oficial da União (DOU).

Apresentada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), a proposta (PL 2.245/2023) se destina a promover a elevação da escolaridade das pessoas em situação de rua, bem como oferecer qualificação profissional e o criar mecanismos que permitam o acesso ao trabalho e à renda.

No Senado, o projeto, relatado pelo senador Paulo Paim (PT-RS), foi aprovado em dezembro pelo Plenário.

Os personagens foram entrevistados durante o programa Thathi Repórter, nesta quarta-feira (29). Na íntegra, assista a participação completa: