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A heresia e os demônios de Saramago

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A heresia e os demônios de Saramago
José Manuel Lourenço é jornalista e bacharel em Ciência Política

Uma das passagens mais surrealistas que vivi em Portugal ocorreu em 2009, envolvendo o escritor José Saramago. Já morava naquele país há alguns anos e, por isso, pode-se dizer que já havia me acostumado à cultura e aos costumes locais.

Aqui, talvez seja bom apresentar uma explicação ao leitor que pode se perguntar porque diabos um cidadão português não haveria de estar acostumado com os costumes do seu país. Bem, na verdade, a cidadania portuguesa foi herdada, por ter nascido no que era então uma colônia portuguesa, a atual República de Angola.

Como vim relativamente novo para o Brasil e toda a minha formação cultural e profissional ser brasileira, só vim a conhecer Portugal em 2003. Gostei bastante, devo dizer, tanto que lá fiquei até 2010.

Após essa explicação, onde entra o Saramago nessa história? Bem, em 2009 ele lançou o livro “Caim”, que provocou reações exacerbadas tanto da Igreja Católica quanto de políticos indignados com o conteúdo da obra. A base dos ataques de ambos estava no fato de que, segundo eles (curiosamente, mais os segundos do que a primeira), as palavras de Saramago ofendiam o Livro Sagrados dos cristãos.

A bem da verdade, deve-se dizer que, na época, o escritor havia definido a Bíblia como “um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”.

A parte surreal dessa história aconteceu quando um deputado de Portugal no Parlamento Europeu (claro que não vale a pena dizer o nome do distinto senhor) armou-se de uma indignação mais teatral do que verdadeira e simplesmente pediu para que Saramago renunciasse à cidadania portuguesa por ser uma vergonha para o país.

Quando foi perguntado se havia lido o livro, respondeu candidamente que não e perguntou aos jornalistas presentes se era obrigado a ler.

Essa história sobre Saramago vem a propósito de, nesta terça-feira (8/10) completarmos 21 anos da atribuição do Prêmio Nobel de Literatura a José de Sousa Saramago. É o único a que fez jus um escritor de língua portuguesa, embora ache que Machado de Assis e Guimarães Rosa deveriam receber Nobels póstumos e Mia Couto já o faz por merecer.

Confesso que li menos Saramago do que ele merece. Com certeza, passaram-me pelas mãos “A Jangada de Pedra” (1986), “História do Cerco de Lisboa” (1989), “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) e “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995). Desses ainda hoje releio Jangada de Pedra e sempre com o mesmo prazer e espanto da primeira vez. Belíssimo, encantador, poético, inesperado.

Sempre achei que três categorias profissionais deveriam ter uma espécie de salvo-conduto mundial para fazerem e dizerem o que querem: escritores (obviamente como Saramago), músicos e arquitetos. O que produzem, sem dúvida, são provas de que ainda podemos ter algum tipo de esperança no ser humano. Por isso, falem as bobagens que quiserem, porque o saldo sempre será positivo.

Escute qualquer coisa de Paulinho da Viola ou Tom Waits, leia Saramago, Mia Couto ou o peruano Manuel Scorza e veja algumas obras de Le Corbusier, Koolhaas ou o português Álvaro Siza e me diga se eles não adquiriram o direito de falar o que quiserem, sobre o que quiserem e quando quiserem?

Há momentos nos caminhos da civilização humana – e talvez possamos estar em um deles agora, no Brasil e no mundo – em que as trevas julgam poder amesquinhar e amedrontar o pouco de criatividade e genialidade que ainda temos.

Curiosamente, os seus arautos têm uma coisa em comum: a negação do amanhã. Agem sempre como se o papel que hoje representam fosse permanente, como se congelassem o tempo ao seu prazer. Infelizmente, o destino dessas criaturas – assim como foi o do eurodeputado português -, inevitavelmente, será a lata de lixo da História, alguma nota de rodapé necessária, mas rigorosamente empoeirada.

Vinte e um anos depois de receber o Nobel, Saramago permanece mais vivo do que nunca, como escritor e como ativista político, embora fosse absurdamente chato no segundo quesito. Mas é Saramago e, talvez, as suas posições políticas – algumas bem retrógradas – fossem um lembrete para todos nós que, afinal, gênios também são humanos.

Assim, na terça-feira, se tiver um tempinho, leia alguma coisa de Saramago, em homenagem ao nosso Nobel português e à sua profunda capacidade de nos surpreender com as suas ideias, escritas em papel.

* Só para finalizar, aproveitando o tema da heresia, acho Mia Couto melhor do que Saramago.