Quando se trata de política, dentre as contradições que notamos em nossos tempos, algumas são realmente extraordinárias.
Para os políticos progressistas (do espectro não conservador, ou seja, a esquerda pensada de modo mais amplo), há tempos ensimesmados na ilusão de sua autossuficiência e hegemonia, foi surpreendente que agora o presidente da República seja discípulo do guru terraplanista, conhecido ora por Rasputin da República, ora por Bruxo da Virgínia.
Seus caudatários, numa base formada desde o PSDB até os neopolíticos do PSL e afins (entre outros, os “tontos do MBL”, assim definidos pelo atual ministro da justiça), repletos de digital influencers (youtubers), mostram-se insensíveis aos pré-requisitos mínimos da urbanidade (civilidade) republicana.
Os B17, em sua condição pré-iluminista, desprezam os rituais da democracia e revelam dificuldade no pensamento in abstracto (raciocínio conceitual e desvinculado da experiência). Mas a abstração é primordial para o estabelecimento de políticas públicas favoráveis à massa de pessoas chamada povo (justamente um conceito abstrato). Assim, deixam à posteridade cenas de nonsense (falta de sentido), assustando de vergonha qualquer pessoa sensata.
O recente “convite com urgência”, fruto da dificuldade na redação de ofícios por parte de deputados do PSL, feito ao jornalista estadunidense Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, e tudo mais que vem ocorrendo na câmara dos deputados, é exemplo para entrar nos anais da história política da esfera terrestre em todos os tempos (dizemos aqui “esfera” porque não somos terraplanistas, e, além disso, discordamos da hipótese cosmográfica geocêntrica). Já a compra de votos para o desmanche da previdência faz o antigo mensalão parecer um procedimento ingênuo.
Toda esta confusão nos deixa atordoados. Torna-se cada vez mais difícil pensar com clareza. Vivenciamos talvez a morte da racionalidade?
Tanto mais difícil compreender como se mantém a base de apoio aos escândalos de todo tipo, fraude, nepotismo, estupidez reiterada e toda mais incapacidade de governar. Por conta do conluio em processos judiciais, juiz e promotores, em qualquer país sério, estariam próximos da prisão por formação de quadrilha.
Após a reforma trabalhista que gerou desemprego ainda maior (porque os empresários não querem investir em produtividade, tudo tem girado em torno do capital financeiro), espera-se agora, com a reforma da previdência, o aumento exponencial da pobreza e miséria no Brasil.
Nunca um governo provocou tamanha involução (retrocesso) na estrutura do bem-estar de sua população. Mas isso tudo ocorre sob aplausos de um grande contingente de eleitores ainda iludidos, os quais, por algum motivo obscuro, consideram sacrilégio qualquer crítica ao governo.
Tentemos, mesmo assim, o exame de algumas hipóteses para este inusitado estado de coisas.
1) O neopentecostalismo militante
Umberto Eco dizia que “os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos”. É fácil perceber certos hábitos linguísticos dos neopentecostais, basta assistir a seus cultos no YouTube.
Não dizemos igrejas evangélicas, como é hábito só no Brasil, mas sim neopentecostais, que é o termo correto, porque, ao contrário das igrejas evangélicas tradicionais, como a luterana e a presbiteriana (calvinista), com seus cerca de 500 anos de história, ou suas ramificações até o século XIX (batistas, metodistas, entre outras), os pentecostais brasileiros são manifestações religiosas fundadas no século XX. Já seus derivados mais recentes, os neopentecostais, contam com poucas décadas de existência. Contudo, a curta história destes contrasta com o excessivo engajamento político-eleitoral.
O paradoxo evidente, mas sobre o qual ninguém fala (nem os próprios neopentecostais se deram conta), é que o maior crescimento do número de crentes no Brasil coincide com o período dos governos do PT. Desde a eleição presidencial de 1989, entre os crentes, há a convicção de que se Lula ganhasse, “acabaria com as igrejas evangélicas no Brasil”. Pois é, o PT foi vitorioso em quatro eleições consecutivas e os neopentecostais só prosperaram cada vez mais.
Quem presta atenção nos “hábitos linguísticos” de um culto neopentecostal, não estranha esse tipo de formulação: “a Bíblia é nossa arma, irmãos, na guerra cósmica entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo. É preciso extirpar o mal da face da terra, esmagá-lo. É preciso limpar da terra o pecado, cortá-lo pela raiz. Estamos em guerra, irmãos!”
Esse mote é tão comum que soaria familiar para quem comunga nos vários tipos de templo. Em sendo a essência do neopentecostalismo a ideia de uma certa materialização no homem, de certos dons do espírito, em outras palavras, a possibilidade de vir a nós o reino espiritual, não é de se estranhar a transposição automática da guerra cósmica à guerra política. A Bíblia transubstanciada em arma literal, transforma a igreja num clube de tiros. Direita e esquerda se transformam em Deus e Satanás. A militância é necessária para extirpar o mal vermelho, para que o céu da prosperidade renasça das cinzas da planície terrestre.
Se por definição o exercício da fé pressupõe “a certeza das coisas que não se veem”, essa transposição do mundo espiritual ao mundo material se dá de forma avassaladora. Num mundo onde não se precisa de provas para constatação de fatos e tudo depende da revelação espiritual do que há de obscuro, as Fake News (notícias falsificadas, fraudes de comunicação), transformadas em armas políticas, proliferam de modo viral e são plenamente aceitas. As teorias da conspiração ganham status de verdades irrefutáveis.
É dentro desse modus operandi (maneira de atuar) que a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos se lamentou, sem se envergonhar, que a ciência tenha sido tomada por cientistas. Não por menos, os neopentecostais ainda representam o reduto mais fiel do B17, estando já prometida, para o STF, uma vaga para um novo ministro “terrivelmente evangélico”.
2) Olavismo cultural
Não se pode confundir as coisas. Se a Bíblia servirá para toda sorte de justificativas entre os neopentecostais (da adesão ao armamentismo à criminalização da criminalização da homofobia), já nesta outra faceta dos B17, ocorre um pensamento talvez mais sofisticado, inspirado na narrativa da guerra cultural, existente desde os primórdios do cristianismo.
O olavismo cultural, uma reedição dos ideais das cruzadas medievais e reiterando um tipo de catolicismo tal como da TFP (Tradição, Família e Propriedade), tem a ver com uma disputa imaginária entre ocidente e oriente, cristianismo e mundo não cristão, esfericistas e terraplanistas, geocentristas e heliocentristas, tradicionalistas e globalistas, conservadores e progressistas.
Neste caso, os “hábitos linguísticos” podem ser constatados a partir de formulações deste tipo: “há em curso uma conspiração comunista travestida de globalismo que tomou a ONU, toda a Europa, e está prestes a dominar todo mundo – é por isso que Notre-Dame foi incendiada. Esta conspiração visa destruir a cultura ocidental com a ruína dos valores cristãos tradicionais, sendo o oriente muçulmano uma ameaça consequente da globalização. No Brasil, o lulopetismo e o Foro de São Paulo são braços atuantes desta conspiração global. O aquecimento global é uma farsa e Hollywood está a serviço do porno-marxismo-cultural”.
A tudo se aplica a lógica binária (maniqueísta) da guerra cultural. Este séquito divide o Brasil entre anti-petistas e petistas (ou anti-lulistas e lulistas). Os olavistas (alguns dizem olavetes) são incapazes de imaginar que possa haver alguém cuja postura não seja anti-petista, nem petista (nem anti-lulista, nem lulista). Também não conseguem compreender que alguém possa ser crítico contrário ao B17, sem ser petista, nem lulista, como, por exemplo, é o caso dos autores deste artigo.
Este maniqueísmo redutivo concebe o mundo na divisão estancada entre bem e mal, crente e descrente, fiel e herege, direita e esquerda, verde-amarelo (lembrando que a cor convencionada para o fascismo histórico na Alemanha é o marrom) e vermelho.
O olavismo cultural identifica o petismo com o comunismo, crença esta absurda, porque o PT sempre foi uma social democracia atrelada ao sindicalismo. Aliás, nos anos do PT no governo, nunca o capital financeiro se deu tão bem no Brasil.
O olavismo cultural ignora que, desde 1989, com a queda do Muro de Berlim e com o colapso da União Soviética, não existe mais no mundo nem partido comunista, nem programa de estatização dos meios de produção.
Lembremo-nos de que o PCdoB é comunista só no título, aliás, outro anacronismo que deveria ser deletado. Este partido deveria mudar de nome, antes tarde do que nunca. A referência histórica do PCdoB, de comunismo dos anos 60, da linha albanesa, é vergonhosa e totalmente ultrapassada. Já Cuba está ingressando aos poucos num tipo de capitalismo com estado social e, por sua vez, a Coreia do Norte não passa de uma aberração, cujo sistema é uma monarquia terrorista e ditatorial, com forte aparato político-policial de Estado (a maior tentativa de refutar Marx em toda a história). Portanto, nada mais absurdo que idealizar o “comunismo” como inimigo, que já há 30 anos deixou de existir enquanto tendência político-partidária em todo mundo e de uma só vez (foi, aliás, o fim da Guerra-Fria, vencida pelo capitalismo).
Mas, para o olavismo cultural, os partidos mais à esquerda no Brasil (mesmo nenhum deles sendo de fato comunista), somando-se Cuba e Coreia do Norte, representam a ameaça comunista no mundo, mesmo que, num rápido questionamento racional, nada disso faça sentido.
O olavismo cultural é uma reedição estilizada de Oswald Spengler, um teórico da cultura do início do século XX, sem dúvida um autor menor de seu tempo, mas cujos ideais antidemocráticos e imperialistas influenciaram Mussolini.
Outra referência é Steve Bannon, publicitário e marqueteiro político estadunidense, conhecido propagador de notícias cuja veracidade é duvidosa (Fake News), belicista (gosta de guerra), anti-democrático, anti-feminista, populista de extrema direita e articulador de esoterismos neofascistas. De tão ardiloso, articula até mesmo a oposição interna no Vaticano contra o Papa Franscisco. Sua agenda é definida pelo “tradicionalismo radical contra os representantes de uma elite global” (seja lá o que isso for).
Bannon atuou na eleição de Trump e quem sabe também na de B17. Agora Bannon faz do 03 seu garoto de recados na América Latina.
O governo tem no neopentecostalismo militante sua base eleitoral, e, no olavismo cultural, seu respaldo intelectual. Trata-se de uma nova realidade brasileira, impensada até pouco tempo atrás. A tragédia maior é que se tornou insuficiente a sensatez de apenas explicar que a terra é redonda e também que o cristianismo não coaduna com violência nem injustiça social. Outro pilar do mundo B17 são as milícias. Contudo, para este estudo, teríamos que abordar um contexto lumpemcultural, que foge aqui dos nossos propósitos.
Os partidos que poderiam ter consolidado um estado democrático-social falharam. O PSDB se corrompeu, agora guinou à extrema direita. O PT, mistura de sindicalismo pelego com culturalismo pseudo-intelectual, também se corrompeu, não obstante seus importantes avanços sociais. O povo brasileiro, sentindo-se traído, acreditou que estava votando numa figura anti-status quo (votaram “contra tudo isso que está aí”).
As medidas do atual governo estão relativizando a democracia, os direitos humanos, o trabalho escravo, o trabalho infantil, a preservação da Amazônia e de toda natureza. Outras tragédias são o fim da previdência (após uma reforma trabalhista com péssimos resultados) e a privatização pretendida de todos os setores onde o estado deve garantir o bem-estar social, incluindo-se o fim do SUS. Fora isso, procura se eliminar as referências positivas à militância feminina, indígena, dos negros, da população LGBTQ+ (e o Brasil já lidera o ranking mundial na violência contra homossexuais). Jornalistas de oposição estão sendo intimidados, além das tentativas sistemáticas de destruir as universidades públicas, as quais abrigam artes, ciências e pesquisa científica, filosofia e o pensamento livre. Por fim, a crise do setor produtivo se agrava, uma vez que o capital financeiro tem sido priorizado. É esse o Brasil que desejamos?