A Câmara dos Deputados aprovou, na noite de 14 de agosto, o texto base do projeto de lei que atualiza a Lei nº 4898/1965, descrevendo como crimes condutas de juízes de direito, promotores de justiça, procuradores da república e agentes policiais, até então não tipificadas como infração penal.
Não há dúvida de que a Lei de 1965, editada no período de ditadura militar, estava ultrapassada. É certo, também, que o novo texto, agora submetido à sanção presidencial, oferece maior proteção a direitos fundamentais do cidadão.
Atente-se, por exemplo, ao crime previsto no art. 21, do projeto: “Art. 21. Manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento”. A Lei nº 4898/1965 não prevê essa figura delitiva, e não se pode negar que fato dessa natureza, que vez ou outra acontece em nosso País é bastante grave, justificando-se sua tipificação como crime.
Se, por um lado, o projeto traz boas novidades, por outro, representa notória intimidação a juízes, membros do Ministério Público e agentes policiais, porquanto passa a tratar como criminosos comportamentos que não necessariamente representam transgressão a direitos fundamentais ou riscos para a sociedade. E o pior é que determinadas tipificações são exageradamente abertas, ou seja, dá ao interprete uma discricionariedade que não se compactua com o sistema penal incriminador.
Explico:
O art. 27, por exemplo, traz a seguinte redação: “art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”. A avaliação sobre indícios da prática de crime, ilícito funcional ou infração administrativa implica em tarefa interpretativa e o caráter subjetivo é inevitável.
Ora, um choque de interpretações entre a valoração da autoridade que determinou a abertura das investigações e a tese de defesa poderia ser o suficiente para o início de um inquérito contra o servidor. Nítido, portanto, o caráter intimidativo da nova tipificação.
O que dizer, então, do art. 38, já batizado como “mordaça”? Vejam: “Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação”. Lembremo-nos aqui, a título de ilustração, das entrevistas coletivas que delegados e procuradores da república concediam no curso da operação “Lava Jato”. Essas entrevistas, a meu ver, eram muito úteis, não apenas como prestação de contas daqueles órgãos à sociedade, o que por si só as justificaria, mas também pelo caráter pedagógico, útil para prevenir outras condutas envolvidas nas operações e para demonstrar o modo de agir dos delinquentes.
Pois bem, se sancionado o projeto com a redação do art. 38, essas entrevistas podem ser interpretadas como atribuição de culpa. Resultado: procuradores e agentes policiais ficariam amordaçados e a sociedade não teria conhecimento de falcatruas, improbidades administrativas e crimes do colarinho branco.
A pergunta não pode calar: quem sairia favorecido com a mordaça? Claro que o bandido. O mocinho seria processado.
Então, o projeto idealizado pelo Senador Renan Calheiros, detentor de uma vasta ficha de antecedentes criminais, e apoiado por outros congressistas também atolados em denúncias, antes de pretender ajustar a antiga lei do abuso de autoridade a uma nova realidade, melhor compatibilizando-a ao Estado de Direito, tem o evidente propósito de colocar obstáculos às importantes operações de combate ao crime, como a “Lava Jato”.
Demais disso, não há como esconder que a votação desse projeto no atual momento político buscou, também, o enfraquecimento do Ministro Sérgio Moro, pela caneta de quem passaram vários daqueles que festejaram a aprovação. Afinal, vale lembrar que o projeto de Moro de endurecimento ao combate à criminalidade continua na gaveta.
A palavra agora está com o presidente Bolsonaro, que pode ou não sancionar o projeto na forma como aprovado pelo Congresso. Torçamos para que ele faça bom uso dela.