Essa semana, como todo mundo viu, o senador do Ceará Cid Gomes tomou dois tiros no peito ao enfrentar um motim policial. Fui ansioso ouvir o podcast da revista piauí à respeito: que merda. Porra, gente. Nada justifica? A atitude do Cid Gomes não colabora? Olha, vamo lá, ela inegavelmente, em primeiro lugar, colabora por ter colocado essa discussão no centro do debate. Ela colabora, em segundo lugar, e eu sei que é aí que discordamos, porque, grosso modo, é isso mesmo. A marcha da insensatez, como vocês falam de boca cheia como se fosse um termo tão inteligente, revista piauí, já passou, e agora ela tá dando tchauzinho. Essa postura blasé de vocês colabora muito mais com a manutenção do que está instaurado do que a postura do Cid Gomes não colabora com o contrário, certo? Ora, vocês mesmo observam que o que ocorreu no Ceará é um movimento praticamente nacional, vamos continuar tentando trabalhar pelas vias institucionais? Vá vá. Das duas umas: ou fala mais alto o patrocínio burguês que recheia a revista de vocês, naipe show de jazz e ópera, ou lhes acomete a mesma tacanhice brega, ufanista e mentirosa de PT de fingir que não se propõe aqui revolução. Quando a Dilma propôs revolução sem revolução, em 21 de junho de 2013, com seus papos não reivindicados de reforma política, constituinte e punitivismo penal frente à corrupção, aconteceu o que aconteceu: o tiro saiu totalmente, espetacularmente, nunca-antes-visto-mente pela culatra. O povo, afinal, não é bobo. Nada justifica, vão à merda. Vocês justificam. Vocês amam a república tanto quanto qualquer partido.
Ora, claro que é populista a atitude, claro que é pensada a estratégia, o cara é um político profissional, pelo amor de Deus. Mas e daí? Ninguém pensa em se dar tamanha flexibilidade hermenêutica quando trata-se do inimigo, já percebeu? Porque o inimigo é sempre claro, e corretos como somos, buscamos as inimizades infiltradas na boa-fé que é o nosso lado. A luta torna-se essa busca, quem do nosso lado da trincheira parece que macula nossa imagem, invés de rechaçar o adversário claríssimo, já dado – talvez porque esmagar aliados faça bem pro nosso ego, afinal somos dos melhores o melhor, e falar mal de bandido é muito fácil. A verdade é: que diferença faz por que Cid Gomes fez o que fez? Ele partiu de peito aberto contra usurpadores do poder público, esta frase é verdadeira. Quem mais foi que fez isso? Mas não, vocês vêm falar como “a situação é um prato cheio pro bolsonarismo”, vamos continuar alimentando a nossa oposição e rechaçando a nossa ação. Milicianos encapuzados, e até pra mídia de esquerda o cidadão enfrentar é uma coisa descabida. Fosse uma aula sobre uma revolta militar de muitas décadas atrás a atitude do senador Cid Gomes seria relatada por professores de história, naquela cinematografia apaixonada que eles sabem bem manipular, como um ato de bravura e justiça. Mas não: é irresponsável, e como uns até levantaram, ilegal. ILEGAL! O cara pra cima de bandidos, bandidos de alta octanagem, com acesso privilegiado a armamento e treinamento, e é ilegal – porque você vai pra cima deles, porque invadiu uma propriedade, porque dirigiu um trator sem ter habilitação para tal etc.
E assim a democracia vai se esvaindo no positivismo. O sonho dos militares deu certo; o conflito maior, afinal, é entre eles e eles mesmos, ou seja, eles ganharam de qualquer jeito, a diferença é qual deles, mas não faz diferença, porque eles são o mesmo, e o projeto segue, esses conflitos de agora mais uma mera repetição do vai-vem do militarismo brasileiro, basta pegar qualquer livro de história brasileira do século XX para notar a constante de insurreições militares que, quando não, resultam em guerras civis. A verdade é essa: a república é dos militares. Ela foi fundada por militares, e ela ainda é dos militares. Ela deixou de ser dos militares por um momento, depois voltou a ser, depois deixou, depois voltou… E agora, à moda do século XXI, vai-se desaparecendo a autoridade, e os militares vão tramando-se a república devagarzinho. O golpe já não é mais golpe, a censura ninguém dá bola, de repente temos Batalhão de Choque em Ribeirão Preto, e vida que segue.
Vejo agora que não é nem algo entre a burguesia high level e o apego à república, pois na verdade uma coisa depende da outra. A revista é culpada em ambos os casos, pois como dito, a república é, por definição, militar. Revista piauí, com o P minúsculo mesmo, fundada por João Moreira Salles, um dos homens mais ricos do Brasil. Eis a falcatrua: o veículo de esquerda mais conceituado do Brasil pertence a um banqueiro. E eu ainda me surpreendo! A verdade que querem te fazer esquecer é que, na verdade, não existe monopólio da força. A polícia não tem, e esse é o segredo que faria desmantelar o sistema, o monopólio da força – não importa quão descabido e irresponsável até mesmo a revista piauí diga-lhe que é enfrentá-los. Não é verdade.