Aprendi a amar os detalhes. Não que o quisesse, mas impulsionado pela profissão, trouxe essa peste que me acompanha. Confesso que não sinto prazer. Acho que me torno um chato de galocha, um arrogante de gabinete. Desvendar o atrás das palavras é um exercício continuado de buscas, indefinições, achismos e certezas.
As palavras doem porque têm vida, porque descansam no limbo da alma, porque destroem e constroem simultaneamente, porque ferem, porque matam e ressuscitam sem piedade. Todo intelectual é um apóstolo da chatice, um pregador de meias verdades, um escravo da inquisição pensante. Fernando Pessoa, no heterônimo Alberto Caeiro, disse:” Os poetas místicos são filósofos doentes;/E os filósofos são homens doidos./Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem/E dizem que as pedras têm alma/E que os rios têm êxtases ao luar./Mas as flores, se sentissem, não eram flores,/Eram gente;/E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;/E se os rios tivessem êxtases ao luar,/Os rios seriam homens doentes.”
Falo tudo isso porque um trecho bíblico me atordoa nesses tempos de ferro e escuridão. Está escrito no Livro do Apocalipse 21:8 “Mas os covardes, os incrédulos, os depravados, os assassinos, os que cometem imoralidade sexual, os que praticam feitiçaria, os idólatras e todos os mentirosos – o lugar deles será no lago de fogo que arde com enxofre. Esta é a segunda morte”. Fora as pragas ensejadas no texto, um detalhe me importuna: a segunda morte. Tenho pensado nela como ato de contrição. Não sei como será, mas me amedronta como uma sombra a uma criança no berço.
Todos morreremos um dia. É a chamada inexorabilidade da vida. No entanto, morrer uma segunda morte deve ser a síntese do fracasso, o erro absoluto. Mais triste do que isso é observar quem possui esse destino cruel: incrédulos, depravados, assassinos, imorais sexuais, feiticeiros, idólatras e mentirosos. Se passarmos os olhos no tecido social que nos encobre, vaticinaremos que todos esses “marcados” passeiam na lua cheia de nossos tempos. Há por todos os cantos alguém assim. Não escapa ninguém. Se por ventura não estamos num time, certamente figuramos noutro.
A segunda morte é um fim doloroso por si só. Não permite voltas, não dá a segunda chance. É como se a nossa capacidade evolutiva tivesse um final triste e desabonador. Falo isso porque quase nunca imaginamos algo tão tenebroso. Será que os incrédulos conseguem dimensionar o tamanho de suas negações e a valorização de suas singularidades e egoísmos, capazes de colocar em risco os seus semelhantes? Duvido. Nem quero tocar nos depravados, imorais e assassinos. Chamo atenção para os feiticeiros modernos, com suas salvações ajuizadas por um “deus” capitalista, que vende terrenos e tijolos sagrados, como salvação eterna. E os idólatras? Que carregam as bandeiras de “bezerros de ouro” como guerreiros da tolice. O que falar dos mentirosos, que insistem em dominar cada um nós, levando-nos ao ridículo da subjetividade?
A segunda morte não tem remédio, cura ou perdão. Ela é vívida. Não tem igreja, não tem tribunal, nem jazigo. Ela condena pelo vento, pela água, pelo fogo e pela terra. A segunda morte não ouve choro, lamento, desculpa. Ela é silenciosa e sombria. Pode alguém escapar dela? Pode sim, claro. É só entender e enxergar a vida com a simplicidade da natureza. Entender o mundo pela alma e não pelas ofertas. Mais uma vez Alberto Caeiro: Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…/Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,/Mas porque a amo, e amo-a por isso,/Porque quem ama nunca sabe o que ama/Nem sabe por que ama, nem o que é amar …/Amar é a eterna inocência,/E a única inocência não pensar…