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A vida que vivemos e uma outra, que precisamos experimentar

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Eu sempre soube que o mundo não era o bastante. Não da forma como ele se apresentava para mim. Eu nunca gostei das horas, por exemplo, mas sempre fui apaixonado pelo tempo. E o que há de diferente nisso? Tudo. As horas, embora com serventia para muitas coisas, nos colocam dentro de um relógio impositivo, autoritário. E ficamos sempre correndo atrás dos ponteiros. Lembram-se do coelho de Alice no país das maravilhas? Pobrezinho, vivia atrasado.

Já o tempo nos empresta, nos doa oportunidades. Crescemos com ele, se nos seguramos bem em suas mãos ou em seus cabelos longos e maduros. Ele tem os pés na medida que vale a pena caminhar. O tempo orienta quando estamos com fome, quando temos sede. O que não tem nada a ver com as horas do almoço e do jantar. São outros alimentos de que falamos aqui. O alimento que abastece os sonhos, a alma, num tempo que só existe do lado de dentro de nós.

Por isso digo que, desde criança, aprendi que há essa vida, com a qual nos acostumamos, e uma outra, que só conseguimos notar depois de algum esforço ou necessidade. No meu caso, foi necessidade. A primeira, essa de todos os dias, nos sobrecarrega com o peso das mesmas tarefas e dos mesmos caminhos, limitados por padrões e crenças, como num jogo em que nos dão permissão para dizer a palavra “mundo”, sabendo que jamais iremos alcançá-lo. Ou seja, uma vida na qual nos fizeram acreditar que era a única forma de viver. Já a segunda, sim, essa nos oferta uma beleza diferente, com gosto e forma de liberdade, com cores novas aos nossos olhos, que passam a ler e a interpretar o mundo de forma generosa, poética, de braços dados com o amor. Uma vida essencial, que nos permite ler, escrever, conhecer, sentir e viver a realidade de mil outros pontos de vista. Essas diferenças é que determinam nossa aventura pela Terra.

Quer outro exemplo interessante? Existe diferença entre conhecimento e sabedoria? E o que nos importa mais: um ou outro?

É bacana saber a fórmula da água (H2O) ou do sal (NaCl). Mas é melhor ainda defender e lutar por políticas públicas para que todas as pessoas tenham acesso a água tratada e a comida, todos os dias, em sua mesa. O conhecimento serve de base para construirmos nosso pensamento sobre a vida, diante das informações que vamos recebendo, buscando e filtrando (será que estamos filtrando bem as montanhas de informações de todos os dias?). A sabedoria é o uso mais eficiente do conhecimento, aliado a valores que produzem benefício para uma pessoa ou – mais importante que isso – para uma coletividade.

E se de um lado temos a vida que nos condiciona às mesmas manhãs, com o sol acelerando as horas no relógio, de outro temos um amanhecer com poesia, descrito, visto e sentido de outra forma, como no poema do querido João Cabral de Melo Neto. Chama-se Tecendo a manhã e foi publicado em 1966 no livro A Educação pela pedra. Vamos lá:

1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral, que nasceu em Recife, no dia 9 de janeiro de 1920 e morreu no Rio de Janeiro, em 1999, disse que demorou oito anos até chegar à forma final do poema. Fez trinta e duas revisões. E numa interpretação simples, o que podemos tirar do texto? Que sozinhos não conseguimos superar a noite e produzir a manhã. Que sozinhos não conseguimos eliminar a escuridão e produzir a luz, o conhecimento, a sabedoria. Que sozinhos não somos capazes de sobreviver. Que a vida só tem sentido vivida em comunhão, juntos. E por isso a manhã, como a vida, deve pertencer a todos.

E por que João Cabral não disse isso da forma direta, como eu disse? Porque a poesia dialoga, fala com o leitor pela linguagem da beleza, da surpresa, do encantamento. Ela, a poesia, conversa com a gente buscando tocar nossos sentimentos, nossa emoções, nossos saberes sensíveis. A poesia tem olhos diferentes para ver o mundo e nos empresta essa visão para que ampliemos nosso conceito sobre tudo, sobre nós mesmos, sobre nossa realidade. É dessa vida que precisamos. É por ela que vale a pena viver. Um abraço e fique bem.