Ando de birra com os deuses. Não me atrevo a questionar suas ações, mas levar num só ano Jô Soares, Gal Costa, Rolando Boldrin e agora, Pelé, deve ser castigo para uma sociedade que precisa mais de psiquiatras do que salvadores.
Estamos tomados pela loucura generalizada, é bem verdade. Deu pane no nosso bom senso. Estamos vendo cenas absurdas, gente clamando por divãs. A sobriedade deu lugar ao delírio. Simão Bacamarte, personagem machadiano, da obra O Alienista, tomou vida. A tragédia está em cena.
Quando recebi a notícia da morte de Pelé, mais do que um sentimento de perda, de luto, veio uma cena que me transportou bem longe. Confesso que não vi outra coisa, senão a minha própria família, a minha história, contada com requintes de detalhes, que eu achei ter enterrado no cemitério da minha alma. Que nada!
Essas figuras, Jô, Gal, Rolando e Pelé trazem a seiva da minha existência. De repente, eu estava na sala da minha casa, vendo a Família Trapo, ouvindo na vitrolinha azul de plástico a voz macia de Gal, assistindo Sr. Brasil, ao lado do meu pai, da minha e do meu irmão e escutando num radinho de pilha, amarelinho, ABC, a voz de Fiori Gigliotti gritando o gol de Pelé.
Tudo isso tem cheiro, tem sabor. É sinestesia materializada. De repente, lá fui eu no perfume da mandioca frita, no sabor da maionese de legumes que só a minha mãe era capaz de fazer, no cheiro de cevada que vinha da fábrica da Antárctica, vizinha da minha casa. Veio o gosto do ravióli da Bela Sicília, o perfume do amendoim torrado, vendido na frente do velho estádio Luiz Pereira, do Botafogo. A maciez da pipoca e o seu salgado envolvente. A camisa branca, alva ao extremo do Santos, em campo.
Detalhes cirurgicamente pinçados. Era o fomento do homem que eu esculpia, da alma que eu montava, feito quebra-cabeças. Essas pessoas construíam em mim a associação de prazer, dos singulares prazeres discretos, que se impregnam nas entranhas , que raio-x nenhum é capaz de revelar.
Só quem viu Jô Soares, aprendeu a intensidade da ironia, o segredo do humor, a virtude do escárnio inteligente e fecundo. Só quem ouviu Gal, conseguiu se apropriar das asas e voar bem alto, na fronteira do encantamento e da percepção. Só quem escutou os causos de Boldrin, é capaz de cavar a terra e encontrar as raízes do crescimento pessoal. Só quem se encantou com o malabarismo de Pelé, nos gramados do universo, reconhece o extraordinário.
Viajei com o passaporte vencido. Confesso não querer ter ido. Mas essa força estranha foi bem mais forte do que eu pude resistir. Lido bem com as perdas. Apesar dos pesares, fui treinado para isso. Mas de repente, um turbilhão me conduz a um cenário do eu-menino, que me vence facilmente.
Não são apenas pessoas, essas pessoas, são legados. Uma espécie de alicerce. Os títulos que Pelé trouxe ao Brasil foram meus. As músicas de Gal eram minhas. As piadas de Jô eram pra mim, os causos de Boldrin eram meus causos. Eu tenho a posse dessas preciosidades, porque elas se perpetuam na minha essência. O meu sempre é esse. Não tenho como negar. Foram eles que construíram a minha cidade, a minha Vila Tibério, o meu gosto musical, os meus dribles pela vida, a minha sátira no meu espelho. O que sou é resultado da química que eles usaram.
Quando os deuses me tiraram todos de uma só vez, fiquei bronqueado. Onde foi que eu errei? Descobri que pobreza tem pouco a ver com a falta de dinheiro, mas muito com o fim da identidade. Penso que essa seja a lição de vida, ou morte, não sei. Viajar no profundo da complexidade das coisas simples e deduzir que o ontem é o chão do hoje. Gal cantou, Boldrin contou um causo, Jô fez uma piada e Pelé fez mais um gol. Quando me dei conta, sobrou o silêncio. Os deuses estão de bronca comigo.