A viagem de Lula (PT) a Araraquara (a 273 km de São Paulo) naquele 8 de janeiro estava toda esquematizada: roteiro definido, segurança reforçada e um pequeno grupo de bolsonaristas isolado do lado oposto de onde foi montada a estrutura para o presidente visitar os estragos das chuvas.
Só não estava na programação o que ocorria em Brasília enquanto Lula se deslocava do aeroporto da Embraer, em Gavião Peixoto, para Araraquara.
Foi pelo celular do prefeito Edinho Silva (PT), ex-ministro (Secom) no segundo governo de Dilma Rousseff (PT), que o presidente viu um vídeo da invasão ocorrida minutos antes no Congresso Nacional.
Embora Lula tenha seguido o roteiro inicial, a tensão tomou conta daquele dia em que Araraquara se tornou uma sede improvisada do governo federal.
A prefeitura estava cercada por integrantes de grupos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e simpatizantes de Lula, mas não se sabia, naquele início de tarde, se efetivamente todos que estavam ali apoiavam o petista.
Por isso, policiais militares e membros da Polícia Federal observavam a movimentação nos prédios vizinhos e determinavam que as equipes subissem nos edifícios para visualizar melhor o que acontecia. Embaixo, gradis isolavam quadras ao redor. Até mesmo funcionários de confiança de Edinho tiveram dificuldade para se aproximar.
A visita de Lula, inesperada até a véspera, começou a ser articulada no dia 1º, quando Edinho foi a Brasília para a posse do petista e para conversar com os novos ministros sobre as chuvas em Araraquara. Na última semana de dezembro de 2022, uma ponte havia sido levada pela força das águas e um carro caíra na cratera que se formou. Seis pessoas morreram, todas da mesma família.
Quatro dias depois da posse de Lula, os ministros Jader Filho (Cidades) e Waldez Góes (Integração e Desenvolvimento Regional) desembarcaram na cidade e, no dia 7, Edinho recebeu ligação da assessoria da primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, dizendo que ela gostaria de ir até lá no dia seguinte.
Enquanto convocava secretários para organizar a recepção, o prefeito recebeu uma ligação de Valmir Moraes, assessor de Lula. Era o presidente na linha para afirmar que também iria.
O anúncio se espalhou por Araraquara e bastou para grupos bolsonaristas organizarem uma manifestação.
Lula chegou pouco antes das 14h no aeroporto e seguiu imediatamente para a região da avenida 36, local da tragédia, num trajeto de cerca de 30 minutos. Além de Janja, Góes e Jader Filho, estavam Luiz Marinho (ministro do Trabalho e Emprego), Paulo Okamoto e outros homens de confiança de Lula.
No caminho, um deles, o fotógrafo Ricardo Stuckert, ligou para Edinho, que estava no carro com o presidente, e pediu que mostrasse a Lula um vídeo com imagens do Congresso invadido e sendo vandalizado por manifestantes.
Começaram os telefonemas e trocas de mensagens entre Araraquara, Brasília e Salvador, onde estava o ministro Rui Costa (Casa Civil).
A visita à região da cratera foi rápida. Os bolsonaristas protestaram a uma distância de cerca de 200 metros, o que evitou problemas, e Lula, após cumprimentar apoiadores, foi para a prefeitura, onde chegou por volta das 15h30.
“Num primeiro momento, ninguém tinha noção da dimensão que tomaria. Eram, a princípio, imagens do Congresso sendo depredado”, disse Edinho à Folha de S.Paulo.
“Foi durante a visita do presidente que nós fomos tendo dimensão do que estava acontecendo, quando mostra o Supremo, o palácio [do Planalto]. Claro que aquilo já se caracterizava como algo maior do que uma manifestação. Ali ficava nítido que tinha um objetivo golpista.”
O coronel João Alberto Nogueira Júnior testemunhou a escalada de tensão de uma forma inusitada: como secretário de Cooperação dos Assuntos de Segurança Pública da prefeitura e responsável pela integridade de Lula na cidade, foi um dos últimos a deixar o local preparado para a visita do presidente.
Ao retornar à sede do governo municipal, foi barrado. “Tudo mudou, ficou muito restrito, porque virou um gabinete de crise nacional”, disse o coronel.
Nogueira Junior e outros secretários entraram no prédio minutos depois. Ele ficou do lado de fora do gabinete, onde estavam apenas os aliados mais próximos. “A segurança partiu para grau máximo de proteção ao presidente. Todas as hipóteses passaram a ser consideradas naquele momento”, disse.
O gabinete no sexto andar do edifício viveu uma intensa troca de telefonemas entre Lula e ministros. Os mais acionados eram Flávio Dino (Justiça), José Múcio (Defesa) e o general Gonçalves Dias (Gabinete de Segurança Institucional). Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa também foram destinatários frequentes das ligações.
Parte daqueles momentos estão relatados no livro “Uma Cidade na Luta pela Vida” (Alere Editora), de Edinho, que percorre a trajetória de Araraquara da pandemia da Covid-19 até o 8 de janeiro.
Nele, Edinho narra o constrangimento que sentiu quando Lula pediu para ligarem a TV, pois queria acompanhar o noticiário sobre os ataques: o aparelho tinha queimado durante uma tempestade dois dias antes. Usar a TV do gabinete na visita do presidente não estava nos planos.
Um computador da sala cumpriu a função, e Lula, ao ver o estado da capital federal, subiu o tom. Passou a exigir dos ministros uma reação enérgica, segundo relatos à Folha de S.Paulo, e afirmou que voltaria a Brasília. Foi contido pelo grupo, que temia os riscos de um retorno em meio ao caos.
“Se isso ocorresse, a cena mais provável seria a do avião presidencial tendo que decolar às pressas com milhares de golpistas tentando invadir o aeroporto da capital. Essa cena, se existisse, seria de derrota da democracia e de concretização do golpe”, escreve Edinho no livro.
Em Araraquara, a situação era outra. Integrantes de movimentos sociais em frente à prefeitura gritavam o nome de Lula, e Edinho desceu para falar com eles.
Uma dessas pessoas era Giulia Conde, 24. Bacharel em ciências sociais, ela tinha ido à região em que a cratera se formou para ver o presidente e, ao saber que ele iria para a prefeitura, encaminhou-se para lá.
Ela percebeu certa tensão no ambiente, um medo de haver violência por parte de bolsonaristas. Mas não era o único sentimento. “Houve revolta com o que estavam fazendo [em Brasília], mas também o pessoal demorou um pouco para assimilar tudo o que estava acontecendo. Foi como se estivesse acompanhando a história ao vivo, na nossa frente”, disse.
Enquanto Edinho conversava com dezenas de pessoas no local, Lula seguia nos telefonemas com lideranças do Congresso Nacional, do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Numa coletiva, anunciou as primeiras medidas para conter os danos na Praça dos Três Poderes e, antes de ir para a garagem da prefeitura, para só então retornar a Brasília, saiu pela recepção do prédio para cumprimentar as pessoas que o aguardavam.
O coronel Nogueira Júnior disse que, apesar da tensão, não acredita ter havido risco real a Lula em Araraquara. Edinho usa como exemplo para isso o resultado das eleições.
“Mesmo durante a pandemia, nos momentos mais difíceis, eles [bolsonaristas] nunca conseguiram fazer grandes mobilizações aqui, eram coisas muito pequenas”, disse o prefeito de uma cidade que, no segundo turno, depositou em Lula 50,5% dos votos válidos (no estado, o petista ficou com 44,76%) um desempenho semelhante ao de Fernando Haddad: 50,39% ante 44,73% no resultado final em São Paulo.
Não é de estranhar, portanto, que, em setembro, uma avenida de Araraquara tenha recebido o nome de “8 de Janeiro, dia da vitória da democracia”.
Quanto aos estragos provocados pelas chuvas de dezembro de 2022, eles consumiram mais de R$ 5 milhões em investimentos do governo federal em obras emergenciais. Uma delas, a ponte da rua 9 de Julho sobre o córrego das Cruzes, foi inaugurada em dezembro, com a presença do ministro Waldez Góes.
MARCELO TOLEDO / Folhapress