Depois do que houve no domingo, vendo aqueles horrores da alma humana, fico me perguntando: será que existe alguém que se consagrou vitorioso naquele cenário de barbárie e achou que alguma coisa saiu ganhando daquilo tudo? Cansei de ver e ouvir autoridades, intelectuais, jornalistas como eu, insistindo numa suposta vitória da democracia sobre a tirania. Mas que raio de vitória foi essa?
Não se deve confundir fortaleza com vitória. Podem parecer iguais, mas não são. O que se viu e testemunhou foi a fortaleza das instituições e da democracia sobre a estupidez. Ninguém venceu. Todos perdemos. Perdeu quem achou que venceria os muros da vontade popular. Perdeu quem precisou se defender. Perdeu quem desafiou a autoridade das leis. Perdeu quem precisou mostrar força. Perdeu quem latiu. Perdeu quem mordeu.
Fernando Pessoa, no seu Livro do Desassossego, escreveu: “Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue”.
Quando alguém ousa achar que sua vontade é sempre o motor da humanidade, e não se dá conta de que conviver é estar ao lado do outro e com o outro tramar a caminhada, esse não aprendeu nada do que significa existir em sociedade.
Macular a história, vilipendiar a identidade, destruir as instituições em nome do orgulho, do fracasso e da incompetência é marchar na contramão. Ter que enfrentar os acúmulos da miséria intelectual é caminhar na retrógrada estrada do infortúnio.
Como alguém pode ver glória na espetacularização do caos? Ao que assistimos no domingo foi a mendicância da alma pétrea e submissa. Um bando de alucinados desorganizados, bradando o hino dos fracassados, batendo continência ao inferno, retratando, com riqueza de detalhes a ignominia que se lhes forma.
Que tristeza de toda aquela gente. Apunhalando as costas de quem esculpiu um futuro, de quem escreveu as páginas de um livro de luta e dor. Mal sabiam eles, que enquanto pilhavam, quebravam cadeiras, mesas, destruíam quadros, esculturas, pisoteavam a identidade da nação, uma legião de anjos celestiais e caídos, assistiam atônitos à antropofágica dança do desastre orquestrado.
Mas quando esse povo achou que venceria, volto a Fernando Pessoa, “vence só quem nunca consegue”. Foi então que a fortaleza não ruiu seus muros, foi então que o alicerce de uma nação dificilmente erguida, é bem verdade, na planta e nas pilastras da democracia, precisaram mostrar a sua rigidez.
Não foi preciso um só tiro de canhão, uma só bala mortal, foi preciso apenas um despertador, uma sirene, um grito de uma nação inteira, vociferado o hino do bom senso, entoando a cantilena da lucidez, clamando pela razão.
O Brasil parou, chorou, limpou o lixo mais uma vez, levantou-se, sacodiu a poeira e deu a volta por cima. Olhou para o calendário e, em silêncio, praguejou, xingou todos os palavrões que conhece, e lembrou que daqui a um mês virá o carnaval. Deu um leve sorriso e dançou, afinal, ninguém é de ferro.