Quem acompanha o cenário das ideologias políticas que se assentam em nosso País, pós eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, por certo já ouviu falar em agenda conservadora de costumes. O conservadorismo de costumes está relacionado ao inconformismo daqueles que professam essa ideologia com mudanças que acometeram a sociedade em decorrência da movimentação de um fenômeno chamado cultura. Na grande maioria das vezes esse conservadorismo, manifestado por religiões, por pensadores e por facções políticas é permeado pela arrogância e pela hipocrisia.
Explico: podemos definir cultura como a maneira de agir, pensar e sentir de um povo, manifestada através de seus atos e seus artefatos. Trata-se de um fenômeno que não enuncia uma história pronta e acabada. É um fenômeno em constante movimento, sobretudo em países que não são administrados com base em princípios religiosos, e que perseguem o status de “Estado de Direito”, no qual a liberdade é valor preponderante.
A cultura é uma importante fonte inspiradora do direito, de modo a provocar mudanças sempre que uma nova maneira de agir, pensar e sentir emerge na sociedade. A título de exemplo, até 27 de agosto de 1962, a mulher casada era considerada pelo então Código Civil como incapaz de realizar determinados atos, como trabalhar ou receber uma herança, sem expressa autorização do marido. A emancipação da mulher casada surgiu com o chamado “Estatuto da Mulher Casada”, produto da mudança da cultura, relacionada ao papel da mulher casada no casamento e na sociedade.
Continuo: a absoluta igualdade entre todas as espécies de filiação (filho havido na constância do casamento, filho havido fora do casamento, filho adulterino, filho incestuoso e filho adotivo), inclusive para fins de herança, somente se consolidou na Constituição de 1988. O mesmo se diga com relação aos direitos produzidos pela união estável entre homem e mulher. Isso signifique que o modelo de família da primeira metade do século XX, patriarcal, hierarquizada, patrimonial e matrimonializada passou a dar lugar a uma maior preocupação com a pessoa humana, sua dignidade e seus direitos.
Observem que a movimentação cultural em torno da contemplação dos direitos dos cidadãos levou o País a admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e a mudança do sexo no registro civil, algo impensável no século XX.
Pois bem, uma pergunta vem a calhar nesse momento: será que num Estado de Direito uma agenda conservadora de costumes tem como se sobrepor à histórica movimentação da cultura?
Penso que isso é impossível. Por isso vejo essa ideologia conservadora como arrogante e hipócrita.
Arrogante porque tem a pretensão de impor ao cidadão uma receita pronta dos valores que ele deve cultuar e das práticas das quais ele deve se afastar. No âmbito de um Estado Democrático, o cidadão é livre para escolher sua religião, para ser ateu ou agnóstico. Cada qual é livre para dar o destino que quiser à sua sexualidade. A liberdade é ampla, da mesma forma, para que o indivíduo faça a opção pelo gênero cultural que melhor lhe aprouver, no campo do teatro, do cinema e da música, dentre outras atividades que a cultura aplicada propicia.
Observem, a propósito, a repulsa causada no meio social pelo comportamento ridículo do ex-Secretário da Cultura Roberto Alvim a proferir um discurso integralista, voltado para a produção de atividades culturais conservadoras, inspirado nas palavras de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista. Antes da cena grotesca de Alvim, o Presidente da Funarte Dante Mantovani havia se manifestado pateticamente no sentido de que rock and roll era coisa do demônio.
Vejam que iniciativas como essas que foram relembradas são objeto de chacota e zombaria, uma vez que se contrapõem de forma visceral ao caminho tomado por nossos costumes. Ora, se o partidário da ideologia conservadora quer ouvir Wagner, que ouça, mas não encha o saco de quem se delicia com AC/DC ou Raul Seixas. Se não se permite assistir um filme ou uma peça de teatro inspirados na obra do Marques de Sade ou de Lars von Trier, não queira impedir que partidários da temática por eles explorada fiquem à vontade para assisti-los.
Por outro lado, considero a tal ideologia conservadora como hipócrita porque desconfio que muitos de seus seguidores, senão a maioria deles, morre de vontade de fazer o que aqueles que consideram liberais ou libertinos fazem. Essa vontade não revelada os torna pessoas ressentidas e revoltadas contra os costumes que adorariam cultuar. Isso quando não fazem escondido. Será que nunca se ouviu falar em abuso sexual dentro da igreja católica ou de templos evangélicos? Alguém pode imaginar que tipo de cultura que os preconceituosos conservadores consomem dentro de suas casas, ou quais suas efetivas atividades sexuais no calar da noite?
Dessa forma, a imposição à sociedade da tal agenda conservadora de costumes não encontrará o menor espaço num Estado de Direito, que tem a liberdade como um dos principais fundamentos. Não se cria costume por lei ou por decreto. O costume é objeto cultural e a cultura num País democrático tende a perseguir, cada vez mais, a contemplação de direitos inerentes à espécie humana, a proclamação do respeito às diversidades e da pluralidade de pensamentos e ideologias.