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Deixa-lá ir

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Deixa-lá ir
Carolina Sampaio é escritora

Aquele encontro ainda o perturbava. Tentava prestar atenção em outras coisas, dar voz a outros pensamentos, mas nem enquanto o avião balançava incessantemente ele conseguia parar de pensar naquela mulher. A mulher certa na hora errada. Pensava em todas as mudanças com as quais estava sofrendo e o que poderia ter sido diferente se ele tivesse permanecido em casa. Mas agora era tarde demais para remoer esses pensamentos.

Há pouco menos de um mês, ele estava em seu apartamento, vestido num roupão de banho e nada mais. Não havia tomado banho naquele dia, tampouco no dia anterior. Permanecia em frente à televisão, fingindo que as imagens que passavam na tela e o salgadinho que engolia quase sem mastigar lhe provocavam alguma sensação. Qualquer uma. Mas ele continuava sem se interessar, não importa por quantos canais passasse ou quantos sabores diferentes pudesse experimentar.

Naqueles dias, ele era só apatia. Havia sido demitido já há algum tempo e suas horas se limitavam a ficar esparramado na sala de televisão. Às vezes, quando precisava de uma mudança, ele se deslocava e se esparramava em seu quarto. Nada mais. As louças formavam enormes pilhas na pia, empilhadas de qualquer jeito, e ultimamente não lhe restava opção a não ser comer com um guardanapo – visto que ele já não tinha mais energia para lavar aquela louça.

Quando finalmente deixou seu apartamento, que já começava a feder, para buscar ajuda profissional, aquele homem que se sentava na poltrona em frente à sua disse algo que lhe atiçou a curiosidade:

– Você precisa de uma mudança.

Era isso. Claro que aquele homem estava, em verdade, sugerindo uma mudança de hábitos, mas o sujeito deixou seus pensamentos amplificarem a situação. Pensou em tudo o que poderia mudar, tudo o que lhe tiraria daquela mesma rotina de sofá-cozinha-cama. Pouco depois de chegar em casa, já estava comprando uma passagem só de ida para Paris, onde ser melancólico como ele estava seria considerado normal.

Dominava o idioma muito bem, e não havia nada nem ninguém que o segurasse por ali. Sua família representava nada mais que presenças tóxicas na sua vida, de quem queria nada além de distância, e os poucos amigos que costumava ter todos se afastaram quando ele começara a afundar. Não havia mais nada a perder.

Essa decisão lhe deu um gás que era muito bem-vindo. Durante os próximos dias, ele conseguira lavar louças e roupas, cuidar bem de sua higiene e sair da frente do sofá pela maior parte do dia. Ia a supermercados buscar caixas, a empresas de transporte cotar serviços, a agências de viagem buscar panfletos e livros sobre a cidade, a qual ele jamais conhecera.

O plano era alugar um apartamento através de um aplicativo e, uma vez instalado, procurar trabalho e lugar para ficar. Então olhou um local que ficaria vago por bastante tempo, consultou suas economias e começou a preparar currículos em francês. Fez alguns contatos ainda antes de partir, e conseguiu uma ou duas entrevistas para seus primeiros dias do outro lado do Atlântico. Sentia-se satisfeito. Sua face ganhara nova cor, suas atitudes, mais energia, e seu estado de espírito, mais paz.

Por isso quando chegou ao aeroporto naquele dia, sentiu-se bem o suficiente para puxar conversa com uma mulher que lia o seu livro favorito.

– O que está achando? – ele perguntou, apontando para o livro.

– Até agora, está bom. Mas estou no começo. Muita coisa ainda pode acontecer – ela respondeu, abaixando o livro e permitindo que ele observasse melhor sua face. Um frio percorreu a barriga dele. Aquela mulher parecia especial.

– Pois eu te asseguro que fica ainda melhor.

– Você já leu?

– Já. É meu favorito.

– Não me conte mais nada, por favor – ela riu. Depois de um segundo de silêncio, estendeu sua mão. – Débora.

– Lucas.

E conversaram sobre tudo, desde o tempo até a família, e riam juntos como se fossem velhos amigos. Às vezes, ela o olhava com o rosto inclinado para baixo e ele ficava embasbacado, todas as vezes, com a beleza de seus olhos castanhos. Parecia que ela percebia também aquela conexão estranha que se formara tão rápido entre os dois. Entretidos na conversa, eles esqueceram de fazer justamente a pergunta mais importante.

Talvez, se a tivessem feito de início, não teriam sequer se entregado àquela conversa gostosa, ou talvez tivessem se arriscado mesmo assim. Era de fato um risco, se apegarem um ao outro como faziam naquele lugar, sob aquelas circunstâncias. Mas nenhum dos dois pensou nisso, e por isso continuaram a se conhecer e a fascinar um ao outro com cada palavra.

Ele nunca tinha acreditado em amor à primeira vista. Mas começava a abrir seu coração para a possibilidade, quando de repente uma voz ressoou das diversas caixas de som espalhadas por aquele ambiente:

– Voo J3579, com destino a Tóquio, embarque imediato pelo portão D5.

Ela sentiu primeiro o impacto dessas palavras. Para Lucas, elas não significavam nada, até que ela disse:

– É o meu. Tenho que ir.

– Você está indo para Tóquio? – Ele finalmente compreendeu a situação. Parte de si esperava que ela estivesse no mesmo voo, indo para Paris, e que lá eles pudessem continuar essa e outras conversas.

– Sim. Negócios – ela suspirou. Aquietou-se por alguns instantes, depois disse: – Eu volto daqui a dez dias. Se você quiser fazer alguma coisa, quando você voltar…

– Eu não vou voltar.

Pela primeira vez, aquela mudança parecera uma má ideia. Ele queria desfazer tudo, ficar, mas sabia que era tolice. Quem sequer lhe garantiria que aquilo entre eles – o que quer que fosse – iria durar? Então, silenciosamente, a deixou partir. Pouco depois, chamaram o seu voo, e ele embarcou com mais arrependimento e dúvida do que jamais havia habitado seu ser. Mas estava tudo bem. Ele teria longas horas para remoer todos esses sentimentos ruins. Seria um péssimo voo.